segunda-feira, 26 de novembro de 2018

É água, mano véi

Essa época entre novembro e dezembro é complicada. Chove quase todo dia. Pra gente que mora assim, perto do rio, fica perigoso, sabe? O bicho sobe demais, às vezes tira a gente de dentro de casa, alaga tudo, a gente perde tudo. Tem vez que acontece tragédia, tem gente que morre, até os bicho da gente morre também. Dá uma tristeza... E às vezes ele traz cobra. Deus me livre, tá repreendido bate na madeira. Cobra é bicho do cão. Tu viu lá no Éden, né.
Tô falando aqui mas tô erguendo os móvel que a água já tá entrando. Tenho pouca coisa mas é meu tudo. Moro só, comprei uma geladeirinha usada do cumpadi, um sofá marromeno pra Morena vir tomar uma cervejinha comigo, porque ninguém é de ferro, né? Eita que lá vem chuva!
Minha casa é bem alta já, que é pra prevenir, mas quando tá assim, a gente só sai de barco, de canoa.

Oxe, não me mudo, não! Aqui é meu lugarzinho. Não tenho condição de ir pra outro lugar, não, senhora. E mesmo se tivesse, que outro lugar desse mundo cabe um cabra que nem eu? Ignorante de escola, todo chucro. Deixa eu aqui mesmo... melhor passar vinte dia na casa do cumpadi do que o resto da vida fora de minha terra.
Depois que a primeira mulher me deixou por causa daquele peão safado, num quis mais saber de casar, não. A mulher do cumpadi diz que eu fiquei amargo... eu acho é graça, fiquei amargo não. Tô é passado na casa do alho. Ela diz pra eu me casar com a Morena logo... eu gosto dela, ela de mim, e a gente véve bem cada um no seu canto. Gosto da minha tranquilidade e ela gosta da dela. Deixe assim... Na casa dela a água não chega, mas eu não quero ir pra lá, não... vai que eu gosto e quero ficar de vez? Vai que ela desgosta também e me manda passear? Num tô doido! Rapaz, marré água, mano véi...

Na canoa eu só levo uma sacola de roupa, pra modo de me trocar e uma rede pra atar na área do cumpadi, onde que eu durmo. As outras coisa da casa eu atrepo tudo; improviso uns cavalete com ripa e pernamanca e dá de aguentar.
Eu até sei nadar, mas essa correnteza é tão perigosa, né fia? Ainda mais com chuva assim. A alagação veio cedo esse ano... A filha do cumpadi disse que aqui no nosso estado que o pessoal fala alagação; que o certo é alagamento. Esse povo é muito é besta, cheio das goma. Deu de entender? Então tá bom.

A senhora se segura, não imaginei que ia pegar essa chuva, não... Mas também, era sair ou ficar a noite toda com água até a canela em casa, sozinho e no escuro, pois até a luz já foi desligada. Pura bucha.
A chuva tá engrossando, Dona... Já tá arrependida de me acompanhar até aqui, né não? Pois olhe só, eu também estaria. A gente faz o que dá.
Jesus amado, a correnteza tá muito forte, que Deus ajude nóis. Num tô conseguindo manter o barco. Meu senhor todo poderoso a gente vai virar...

Cumpadi do céu!!! Se eu lhe contar, tu não acredita nunquinha, mas eu juro por tudo nessa vida, pela minha mãezinha que me olha do céu. Foi ela que me mandou esses anjo pra me salvar. Mas antes de eu lhe contar, pegue a coitada da Dona, foi a única galinha que deu de salvar, dê um cadinho de milho à ela, seque a bichinha. Quando eu acordei na beira da água, lá tava a pobre da Dona ciscando... E me arrume uma muda de roupa e um cantinho pra dormir; a sacola de roupa e a rede o boto deve fazer bom uso.

Cumpadi, começou a ventar demais, cumpadi. A correnteza muito forte, a chuva engrossou demais do caminho. Só eu e Dona naquele barco conversando. Começou um vendaval, o diabo do barco virou... Cumpadi... tu sabe que eu nado, mas tava impossívi demais. Eu tentava subir e a água me puxava pra baixo, eu subia e via a pobre da Dona boiando. Cumpadi, foi Deus, não é possívi. Agora se eu te contar, tu não acredita. Apareceu uma canoa, cumpadi. Uma canoa, no meio daquele aguaréu, e a bicha nem se balançava na água. Tinha um homem na canoa e eu pensei que era Jesus vindo me buscar em pessoa, tava crente que ia morrer, cumpadi...

Tu acha que tá estranho até aí, então escuta o resto: o cara me puxou da água e me jogou no barco, me sentei cuspindo muita água. Vou te dizer, cumpadi, o dizer que pobre só enche barriga quando se afoga, é verdade mesmo. Agora eu tô rindo, mas na hora, cumpadi... Me arrepio todo. Me dê um café quente pra eu me esquentar e um pano pra eu me enxugar que já te conto o resto, pelo amor de Deus.

Depois que a gente pensa que viu a morte de perto, até um simples café é bênção. Brigado, cumadi, tá bom demais. Se sentem, pra não correr o risco de cair quando eu contar. O homem me jogou na água e a Dona já tava no barco, a bichinha. E tinha sabe o que mais lá dentro com o homem e a Dona? Cumpadi, pela graça de Deus, tinha três menino. Na hora eu pensei que esse homem só pode ser abestado, botar as criança em risco, mas né? Acabou de me salvar... Cumpadi, eu não atinei. Que eu me sentei, cocei os olho pra desembaçar a vista; eu só podia tá vendo miragem. Cumpadi era o seu Vilso. Ora "que Vilso?". O catraieiro! Esse memo, cumpadi. Fiz essa mema cara. Chega eu pensei em pular do barco de volta. Olhei pras criança e era os dois menino da Marta, mais o menino da Tonha. Cumpadi, eu tô todo arrupiado.

Tu tem noção do que aconteceu com eles, cumpadi? Claro que tu tem, correu na boca de todo mundo. Sim, cumpadi. O Vilso tava atravessando os menino pra escola, tava chovendo e caiu um raio no barco e matou os quatro. Isso mesmo. Morreu os quatro. Nesse memo rio ingrato que virou meu barco. O sangue de Jesus tem poder, agora me diga: morreram e tavam lá. Quando eu percebi o que era que eu tava vendo, puff! Apaguei. Acordei na beira da água já, no seco, a Dona perto de mim. Num tinha barco, nem Vilso, nem menino. Só eu, a galinha e a chuva. Se essa galinha falasse, ela ia te dizer que é tudo verdade. Bebi muita água e afetou meu célebro nada cumpadi, lá sou homem de inventar história?

Olha cumpadi, tu acredita se quiser. Me arrume uma roupa pra eu me trocar. Eu ia trazendo Dona pra gente fazer uma canja, mas agora ninguém trisca em Dona. Deixe a bichinha aí, ela sabe o que eu vi.
Baixando a água, eu vou acender uma vela pro Vilso e pros menino. Foram eles que me salvaram, eu tenho certeza.