segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Idealizei toda a ocasião do nosso pacto de suicídio.
Eu já tinha em mente pra quem enviaria cartas de despedida, mas ainda não sabia como queria morrer. Só sabia que queria que fosse fácil, rápido e, principalmente, indolor. Chegamos à conclusão: opióides injetáveis.
Pra que seja memorável, ainda que eu não saiba pra quem, planejei deixar uma carta codificada, sem tradução, sem que significasse algo. Somente pra confundir.
E se a intenção é confundir, decidi que usarei um vestido de gala azul, longo, brilhante e alugado, bem maquiada, bem bonita. Ele vai usar fraque.
Estarei usando somente um pé dos meus sapatos, que será bota de cowboy. Ele estará usando um pé de meia de cada cor.
O cenário será um hotel bem chinfrim, conhecido aqui como ponto de prostituição. Why not?
Pensei em deixar um mapa e dicas espalhadas pela cidade, numa espécie de caça tesouros que levará ninguém a lugar algum. Isso vai deixar muita gente louca, já que adoram uma teoria da conspiração.
Falei pra reativarmos nossos blogs. Os mórbidos adorarão ler o que os mortos escreveram, tentando fazer ligação entre nada com coisa nenhuma também.
Poderíamos desenhar símbolos nas paredes do quarto do hotel, tudo sem significado. 
Pensando em não deixar os gatos sozinhos no mundo, injustamente os incluí no nosso pacto. Que explicação dariam pra três gatos mortos, um casal vestido elegantemente, num pardieiro todo rabiscado e sem sentido?
Apenas pra fazer da nossa morte um show, atiçar a curiosidade, criar uma lenda. Nada terá ligação com nada. Apenas nosso desejo de morrer. E que mal se divertir uma última vez?
Planejei em todos os detalhes e lhe passei o plano.
Ele disse:
- Fazem 40 minutos que você vem idealizando pra sua morte o reconhecimento que não tem em vida. Você não quer morrer. Você quer um propósito.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Imaculado tesão
Que vem e que vai de tempos em tempos
Da paixão que revive
Dos dedos que me tocam
Dos arfares que me rouba
A vontade que consome
O ato que não consuma
No santo pecado
Do desejo latente
A negação veemente
E a clara memória
Que insiste em mostrar
O que era pra ter sido e não foi
E agora diz que não foi pois não era pra ser

terça-feira, 16 de abril de 2019

Garotinho

Juntos há pouco mais de duas semanas, chegara a hora de conhecer seus amigos. Marcaram um almoço de domingo, todos reunidos de uma vez para, enfim, conhecerem quem era a famosa garota que conseguiu a façanha de, finalmente, fisgar o peixão que meu namorado é. Pelo menos é assim que ele mesmo fala, se envaidecendo todo.

Assumo: estava um pouco nervosa. O que eles esperavam encontrar? E se fossem apáticos e antipáticos comigo? Será que meu namorado se esforçaria pra me deixar a vontade ou me enturmar seria um trabalho só meu?
Fui repassando todos esses pensamentos e as regras de etiquetas conhecidas por mim, numa tentativa de fazer o menos feio possível pr'aqueles estranhos para mim e pessoas importantes para ele.

- Ei, se acalma! É só um almoço. Andréia disse que faria lasanha. A lasanha dela é boa que só! Você vai se dar bem com todo mundo, é tranquilo. - apertou minha mão e me deu selinhos repetidos.

Fomos os últimos a chegar e todos - dois casais - já estavam na varanda a nossa espera. Quando notaram nossa presença, todos os olhares pousaram em mim e senti meu rosto arder de vergonha. Poucos segundos depois (que pareceram uma eternidade) os amigos se aproximaram me dando as boas vindas, dizendo que logo o almoço estaria servido.

Depois disso, foi bastante tranquilo. Fui bem recebida, fiquei realmente a vontade e tomamos algumas cervejas. Não fiquei bêbada, mas fiquei alta, e sabe como é a loura gelada: ela entra, ela precisa sair.

- Onde fica o banheiro?
- Entra pela área de serviço, passa pela cozinha, primeira porta do lado esquerdo. - Andréia, a dona da casa, respondeu me indicando a direção.

Quando me levantei, percebi que estava um pouco alta demais. Meus passos estavam vacilantes e caminhei devagar pra não parecer uma bêbada doida trocando as pernas e ainda correr o risco de cair na frente de todos aqueles estranhos e meu novo namorado.
Estávamos do lado de fora e a casa era bastante grande. Atravessar aquela varanda enorme, área de serviço e encontrar o banheiro num lugar totalmente desconhecido por mim, seria uma tarefa fácil se não estivesse ébria.

Quando coloquei meus pés nas área de serviço, um garotinho de cerca de 2 anos, usando fralda descartável e segurando uma fralda de tecido na mão estava lá. A princípio, tomei um susto pois não esperava encontrar alguém. Não era nada demais, devia ser filho de alguns dos casais e estava dormindo quando cheguei.
Ele gesticulou um "vem cá" com a mãozinha que não segurava a fralda de pano e saiu andando. Comecei a segui-lo e reparei o quanto a casa era escura por dentro. Pouquíssimas janelas, mal iluminada. Apesar de estar um dia de sol intenso, a casa era sombria.
Isso me incomodou, mas foi totalmente pessoal. Gosto muito de boa entrada de luz solar, paredes claras e janelas grandes.

Junte esse pequeno breu, ao fato de eu estar sem meus óculos de grau e um pouco de álcool no meu sangue. Conseguia enxergar bem pouco mas o garotinho seguia caminhando na minha frente e, às vezes, olhava para trás como que para confirmar se ainda o estava seguindo. Claro que eu estava! Se eu tinha chance de ser amiga de uma criança, não a disperdiçaria, e quase me esqueci que precisava fazer xixi e não prestei atenção no caminho.
O menino parou e apontou para uma porta.
- Você quer que eu abra? O que tem aqui?
E então abri. Era o banheiro! Sorri, agradeci ao bebê, entrei e fechei a porta.

Quando saí, alguns minutos depois, o efeito do álcool estava bem mais ameno. Olhei em volta, vi a cozinha e ouvi a voz da turma lá fora e encontrei a saída. O menininho já tinha saído também.

- Tu demorou! Conseguiu achar o banheiro? - Andréia perguntou.
- Sim! O menininho me mostrou o caminho, me levou até o banheiro.
- Que menino? - meu namorado perguntou estranhando.
- Uai, acho que a gente acabou acordando ele com o barulho. Quando entrei, ele tava na área de serviço e me levou ao banheiro.
- Não tem nenhuma criança nessa casa. Não tem mais ninguém além de nós.
- Eita!

segunda-feira, 15 de abril de 2019

bebedeira

Não era pra ter sido assim. Eu só queria me divertir, relaxar depois de uma semana estressante (como todas têm sido há tempos). Mas eu não sei mais beber. Acho que nunca soube.
Sempre que bebo, sigo um roteiro próprio, que não é ensaiado, mas sempre acontece igual. Nas primeiras doses, meus músculos relaxam e meus braços pesam; as pernas amolecem e eu sinto que estou bastante relaxada.
Depois, se continuo a beber, minha visão começa a me enganar um pouco. Perco a noção de profundidade e poderia parar por aí se tivesse parcimônia. Logo depois chega um rápido momento que meu parceiro reconhece bem: eu o olho diferente, o beijo diferente e sinto o álcool me esquentar entre as pernas. Embora eu tenha insistido muitas vezes, ele nunca me toca quando chego nesse estágio. Geralmente é quando ele me aconselha a pisar no freio.
Mas não ontem. Estávamos em casa, vendo um filme, comendo salgadinhos. O que poderia dar errado? Ele não me aconselhou a parar e eu segui bebendo. Dane-se se amanhã é segunda-feira.
Bebi mais um tanto e perdi o filtro.
Sentada no chão da cozinha, enquanto comia dois chocolates a fim de colocar um pouco de açúcar pra dentro, eu disse que queria chorar.
Carinhosamente ele me sentou em seu colo e me tranquilizou pra fizesse isso sem medo, sem segurar, sem julgamentos. Que arriasse toda a carga que venho carregando. E assim o fiz.
Chorei no seu ombro, molhei sua camisa, chorei no travesseiro. Chorei e chorei até dormir.
 
Chorei por causa dos dias nublados que escondem a esperança de um sol de rachar; a falta de perspectiva; medo do futuro; medo do presente e todas as coisas que andam me tirando o sono; ansiedade por não conseguir lidar com os planos a longo prazo; o sofrer por metas não atingidas. Os conflitos familiares; o emprego que detesto; não saber o que fazer dessa vida...

Na manhã de hoje, um misto de tristeza e vergonha pelo vexame, além de uma ressaca leve. Logo veio o acalento "disse pra você bêbada e digo pra você sóbria: sempre estarei aqui e você nunca estará sozinha". Tenho tanta sorte, que nem sei!

sábado, 13 de abril de 2019

Minha versão dos Sete Dias

- Tem esse cara, sempre vejo os vídeos dele no YouTube, ele salta de paraquedas SEM parqueadas.
- Sim, suicídio que chama. - eu respondi rindo.
- Ele joga o paraquedas primeiro e depois pula atrás pra buscar, ou então ele salta e alguém salta atrás dele. Eu acho sensacional. Morro de vontade de fazer também. Um dia vou fazer!

Ele contava empolgado, como se aquilo fosse a coisa mais legal do mundo. De fato, parecia ser muito divertido, mas gosto muito mais dos meus pés no chão. Bem firmes. Em segurança.
Era hipnotizante vê-lo com os olhos brilhando enquanto falava das coisas que gostava, das coisas que queria me mostrar e queria fazer comigo também. A voz que ficava cada vez mais alta, revelando tamanha excitação em me apresentar seu mundo. E o sorriso largo. Que sorriso! A boca perfeitamente desenhada, os lábios carnudos, os dentes alinhados de forma típica de quem já usou aparelho. Aqui posso confessar que tenho certa fraqueza por sorrisos pós aparelho ortodôntico.

Conversa vai, conversa vem, e eu me via cada vez mais envolvida. Há quase duas semanas nos víamos quase todos os dias. Todo o tempo do mundo parecia pouco pra gente. Tínhamos tanto a falar, a ouvir. Coisas a descobrir sobre o outro. Contar sobre as cicatrizes de infância, encontrar marcas de nascença parecidas em ambos e ter certeza absoluta de que o destino fez um trabalho bem feito. Ali, naquela noite, eu já sabia que estava apaixonada e não queria estar em outro lugar que não fosse aquele.

E então, depois de uma daquelas gargalhadas que acabam num suspiro e um silêncio confortável, ele tomou minha mão pra si, endireitou a postura, ficou sério de repente.
- Quero te perguntar uma coisa, mas não sei bem como.
Ele me olhava nos olhos e eu sabia o que viria. Meu estômago deu um nó, meu coração batia tão rápido, tamanho o nervosismo, que jurei que sairia pela boca. Minhas pernas tremeram e quiseram fraquejar, e continuar de pé foi um esforço gigantesco.

Nunca vou me esquecer daquela noite. Do rio atrás de nós, das luzes do calçadão, do banco onde conversamos por horas, do bêbado aporrinhando, o lugar onde comemos a esfirra mais ruim, cara e de péssimo atendimento até hoje. E sensação de que nada faltava.

- Quer namorar comigo?

Aí estava a pergunta que eu esperava. Que queria dizer "sim" imediatamente, mas não pude pois ainda tinha assuntos a resolver antes disso.
Sorri marota e se meu senso de humor foi uma das coisas que o mais fascinou, ia provar dele na pele.

Esse negócio de pular da ponte no rio, pular sem paraquedas... Me deixou aflita sem razão de ser. A menor possibilidade, por mais remota que fosse, de perdê-lo, ainda que nem fosse meu, me fazia querer chorar. Precisei disfarçar enquanto ele falava, mas agora poderia usar isso a meu favor.
- Só se você não pular mais da ponte e parar com essas conversas de saltar de paraquedas sem paraquedas. Aí eu penso no teu caso e te respondo daqui 7 dias úteis.


A versão dele você pode ler aqui

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Honda Civic 2008/2008

Quem olhava de longe podia afirmar: não tá bonito de se ver, tá avariado, precisa de muitos reparos. Mas tem potencial. Vai ser custoso, mas pode voltar a ser o que era antes. Será? Às vezes, quando começa a tentar remendar, fica pior. Sempre aparece um problema novo que nem se imaginava que existia.

Lembra como era antes? Bonito, imponente. Enchia os olhos de quem via. Fazia uma certa invejinha. Mas agora, os dias de glória passaram.

Se olhasse de perto, parecia que tava de longe: era ainda pior. Por dentro, tanta coisa corroída, rasgada. O barulho doía no ouvido, fazia vergonha. É uma pena. Isso fora os problemas envolvendo terceiras pessoas. Ou quartas e quintas.

Lembra como era antes? Difícil se desfazer dele, né? Significa tanta coisa. Embora se saiba que é o certo a se fazer. Já faz tanto tempo... Tem um certo apego. Mas apego nem sempre significa algo bom, não se esqueça.

Aceitar a hora de seguir em frente é muito doloroso pra ela. É ter que lidar com o fracasso de não poder mais mantê-lo e que as aparências estão bem longe de ser o suficiente. Ainda pode parecer ser grande coisa, mas não é mais funcional. Tem dado dor de cabeça, gasto, briga... Não vence botar reparo.

É tanta coisa errada que ele perdeu o valor. Infelizmente. Você pode querer que ele valha dezenas de milhares, mas não é mais assim. Eu sei, não dá pra ficar por baixo. Quer e merece mais. Mas adianta?

Melhor assinar o divórcio de uma vez e vender esse carro.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Prestes a tomar um banho, ouvi a água bater no telhado. Sorri traquina.

Sem pensar, nua saí do banheiro e o encontrei no fogão. "Estou fazendo certo?" quis saber, apontando pra panela.

Me aproximei e apaguei o fogo. Puxei pela mão, porta a fora. "Vamos?" eu convidei quase implorando. Talvez nem quisesse, mas acho que não conseguiria me negar, tamanho o brilho que eu sabia que tinha nos olhos.

A água despencava com força, a grama já estava encharcada. Abaixou o short e se igualou comigo. Ambos em pêlos.

"E se chegar alguém?"

Numa euforia completamente infantil, ao som de gargalhadas quase exageradas, corremos pelo quintal; nos banhando na água gelada da chuva; nos divertindo numa biqueira; com os cachorros; propondo uma aposta de corrida; reclamando que correr pelado não era tão confortável assim, mas ainda engraçado.

E toda vez que a água gelada me incomodava um pouco mais, sentia minha pele arrepiada, os pêlos eriçados, os mamilos se encolhendo, eu o abraçava; ainda gargalhando.
O calor do corpo dele provocava um pequeno choque de temperaturas. Como podia continuar ainda tão quente?

A chuva foi diminuindo, até virar um sereno chuvisco. Disse-lhe que há muito não tinha momentos tão divertidos quanto os últimos 20 minutos. Minhas bochechas doíam de tanto rir, meu abdômen também.

"Quero te dar mais disso. Dessa diversão."

Sorri besta entre beijos.
Lavei o barro dos pés e fui pra um banho quente enquanto ele terminava nosso almoço.

sexta-feira, 29 de março de 2019

"de cima do mundo eu vi o tempo"

Esse é o nome de um dos álbuns dA Banda Mais Bonita da Cidade.
Pela janela do ônibus, enquanto eu ouvia Trovoa pelos meus fones de ouvido, vi uma cena curiosa e muito bonita quando paramos no semáforo.
Na calçada, esperando uma clínica abrir (ainda eram 6:30 da manhã), duas mulheres e um bebê de pouco mais de um ano. Uma delas se afastava para trás lentamente, de costas, enquanto o garotinho arriscava alguns passinhos. Provavelmente seus primeiros passinhos. Ele sorria desconfiado, usava as mãos para se equilibrar, os pezinhos vacilantes, um após o outro naquela sandalinha "de Jesus" marrom.
Ela confiava que ele era capaz de caminhar e ele confiava que era capaz de caminhar. E assim ele andava na direção dela.
Naquele instante, naquela bolha, não havia nada mais importante que os passos do menino. Não importa se a clínica demora a abrir, ou se ainda está muito cedo. Se o Bolsonaro foi ao cinema ou se o Temer já saiu da prisão. Só haviam a mulher e o bebê. Como se o tempo parasse pra ele firmar os pés no chão.
De dentro do ônibus, eu vi o tempo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Trio, tríade, trindade

Engraçado como as coisas são.
Engraçado, eu digo, pois não achei a palavra certa pra definir.
Nós conhecemos na faculdade, temos personalidades totalmente (totalmente, mesmo!) diferentes e, ainda assim, o destino achou que seria de bom tom nos juntar. Que bom por isso!
Adoro ver como evoluímos juntas, mesmo separadas em vários momentos. Se antes as comemorações de aniversário eram sempre regadas a muito álcool, farra e libertinagem desregrada, hoje tomaram um rumo extremamente oposto.
Não que antes fosse ruim. Era ótimo. Naquele momento.
Gosto de ver nós três, hoje, como três jovens senhorinhas, sóbrias (!), uma bebê deliciosa no colo e um amor que nos une, sentadas em volta de uma mesa, rindo e brincando, sem ressentimentos do passado e sendo felizes, com menos álcool e mais tranquilidade num jantarzinho em família.
Gosto das coisas que usamos pra nos presentear: livros, diários, cadernos de desenhos; sempre tentando incentivar o melhor e o talento de cada uma.
Gosto de ver que meus filhos serão bem amados por elas e que estarão em boas mãos na minha ausência.
Gosto de ver que tenho pra onde correr e que nenhuma das duas jamais faltarão para comigo.
Gosto mesmo dessa tríade de pseudo artistas que somos: duas quase escritoras e uma quase desenhista.
Gosto mesmo das minhas meninas!

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Freak

Acordou num pulo, ofegante, suada, molhada entre as pernas. Era a primeira vez que tinha um sonho erótico.
Um par de mãos que corriam por seu corpo com firmeza, sabendo onde tocar pra lhe oferecer prazeres intensos. Línguas - sim, mais de uma - lhe lambiam, por toda parte ao mesmo tempo, bocas que lhe beijavam com voracidade. Ela ainda podia sentir os hálitos quentes daquelas bocas em seu rosto. Curiosamente, havia cheiro de saliva debaixo do seu nariz.
Jamais tinha tido um sonho desses. Estava envergonhada, achava que Deus a julgaria por isso. Extremamente religiosa, ainda era virgem aos vinte e quatro anos, mal havia beijado na boca antes, quanto mais feito sexo. E aquele sonho era um pecado pra ela.
Ainda assim, contrariou a si mesma tocou-se e sentiu como estava encharcada, ao mesmo tempo que sentiu um arrepio e seus músculos contraindo num reflexo. Tirou a mão de dentro da calcinha tentando afastar os pensamentos tão impuros que insistiam em permanecer.
Seu sexo latejava, praticamente implorando para que continuasse sendo estimulado, como no sonho.
Voltou a mão para dentro da calcinha e devagar, ainda relutante, massageava seu clitóris em movimentos circulares. Não demorou muito pra que se entregasse aos prazeres da carne e simplesmente parou de pensar. Que Deus a perdoasse pela masturbação depois.
Seu dedo do meio deslizava para cima e pra baixo, de um lado para o outro, hora lentamente, hora com rapidez, por toda a vulva. Estava quente, melada, respirava tão ofegante como quando acordou. Intensificou os movimentos e não demorou a gozar, deixando escapar dos lábios entreabertos um gemido contido.
Ficou deitada, olhando pro teto escuro do quarto enquanto seu coração desacelerava, sentindo um misto de culpa e euforia. Num ato ousado para ela, levou o dedo à boca, sentindo seu próprio gosto.
Passados alguns longos minutos, sentindo-se recuperada dos formigamentos em forma de pequenas descargas elétricas nas pernas, virou de lado, afim de alcançar o abajur na mesinha de cabeceira, ao lado da cama.
Uma luz amena irradiou do abajur, sem agredir a visão, até que se acostumasse com a claridade. Aos poucos, a vista foi se adaptando e ela conseguiu identificar as formas do quarto novamente. Sentou-se na beirada da cama, com intenção de ir ao banheiro se limpar. Ao se pôr de pé, sentiu um líquido quente descer por suas pernas como cachoeira. A visão era tão perturbadora, que mijou-se no mesmo instante.
Sentado na cadeira, de frente para a sua cama, uma aberração a encarava. Aberração era pouco. Não havia nada que pudesse descrever o que era aquilo, nada que pudesse descrever o terror que chegava a doer em seus ossos.
Maliciosas, as bocas sorriam. Um corpo de homem nu da cintura para cima e uma calça aberta na altura do pênis.
Um homem. E duas cabeças. Assim, exatamente como Bette e Dot Tattler.
O ar lhe foi arrancado dos pulmões e ela não conseguia proferir uma só palavra. Caiu sentada na cama novamente, sem piscar, sem conseguir desviar os olhos daquilo, enquanto os dedos dos pés estavam mergulhados em uma poça de urina. Achou que estivesse sonhando, achou que fosse a punição imediata de Deus por seu pequeno ato libidinoso. Achou que o próprio Diabo veio lhe buscar para o inferno. Tantos pensamentos em tão pouco tempo...
"Sabe", uma das cabeças, a da direita, começou a dizer enquanto segurava o próprio o pênis - a outra cabeça mantinha a expressão de prazer enquanto se masturbava - era um pênis pros dois? O que merda era aquilo? - "nós íamos nos contentar em apenas brincar com você enquanto dormia, mas você acordou". Então não havia sido um sonho, as bocas, as línguas, as mãos! Era ele. Eles. Estava tão desesperada que sentia seu coração ameaçar saltar pela boca e, ao mesmo tempo, sua pressão cair.
"Você acordou e começou esse showzinho tão delicioso que resolvemos ficar pra assistir", era a vez da Esquerda falar. "Você se divertiu? Quer mais? Podemos te dar mais", se levantaram.
Ela se encolheu na cama, de olhos fechados, esperando que quando abrisse, eles não estivessem mais ali e fosse tudo um pesadelo. "Imagine", tornaram a dizer, "todos os prazeres que duas bocas podem lhe dar" e caminhavam em direção à cama.
Cobriu a cabeça com o cobertor e se fez silêncio. Achou que tudo tinha acabado quando duas mãos lhe puxar pelas pernas.
E essa foi a última coisa que sentiu antes de acordar num hospital psiquiátrico, amarrada pelos pulsos e tornozelos.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Bolo de pote e pizza

Eu pensava que relacionamentos eram fáceis. Mas já devia saber que não eram, lá pelos nove ou dez anos, quando via meus pais brigando. "Eles não se gostam", eu pensava. "Eu vou gostar do meu marido", eu profetizava.
Como se o gostar fosse suficiente.
Cheguei na famigerada adolescência. Meus pais se suportavam cada vez menos.
Além do exemplo diário de "como não ser um casal e traumatizar seus filhos pra todo o sempre", eu via outros casamentos ao meu redor ruirem. Ou casais vivendo sob os escombros do que, em tempos passados, foi uma união feliz e, ou não se separavam por causa da religião, ou já estavam velhos demais pra isso, ou não saberiam viver de outra forma que no fosse no seu inferno pessoal, onde atormentar o outro e ser atormentado por ele era um estilo de vida doentio e prazeroso.
Atravessei a adolescência inteira dizendo que nunca ia me casar e deus-me-livre-um-homem-mandando-em-mim. Minha mãe dizia que eu estava errada. Em dias ruins, graças a minha inutilidade doméstica (inútil por não gostar de fazer e não por não saber fazer), minha mãe ou meu pai revezavam as vezes em que diziam "se não aprender a cuidar da casa direito, vai apanhar do marido! Você vai ver como é bom ter menino chorando no seu pé, casa pra limpar, comida pra fazer e um homem que chega a noite e quer tudo pronto". Pois ele que limpe ou pague uma empregada então, eu pensava. Além do quê, nunca vou me casar. Deus me livre esse inferno. Casamento parecia até punição.
Pra eles, era mesmo.
Durante um período da adolescência, eu repelia tanto o sexo oposto, que todos suspeitavam que eu era lésbica (o que tava só 50% errado). Até que conheci um rapaz, meu primeiro namorado.
Meu primeiro amor!
Ou era pra ser, né?!
Eu gostava dele. E ele de mim. Muito mais ele de mim do que eu dele. E aí ele planejou nosso casamento durante nosso curto ano juntos, escolheu nome dos nossos dois filhos e nem sequer pude opinar.
Então relacionamento é isso?
Assim eu não gostei.
Toda vez que ele falava do casamento, eu não conseguia me empolgar. Fosse por ter consciência de que tinha só 18 anos e aquilo era bobagem ou por que já tinha posto na cabeça que não casaria e não tinha coragem de dizer a ele ainda. Eu até gostava dele, mas não gostava o suficiente.
Cansei! Mandei tudo ao espaço e entendi por quê separações são difíceis. Se em tão pouco tempo já foi um deus nos acuda (o bichinho se entregou ao pranto e seguiu numa empreitada fracassada em me reconquistar), imagina ter de se desfazer de décadas, bodas de prata e ouro, de união. "União".
Segui mais dois anos de copo sempre cheio e coração vazio, fui me tornando um cara solitário e frio, consciente de que por mais que eu me envolvesse com alguém, nunca passaria de belos amassos pelos escuros da universidade, de um beco sem saída ou de um quarto de motel. Eu nunca iria me casar e fracassar como meus pais, meus avós, tios e o casal há mais de 30 anos juntos, que eu jurava por Deus que seriam a única exceção que eu conhecia e um dia veio a tona que aquele senhor, tão gentil, tinha uma segunda família completa na cidade vizinha. Fiquei em choque. Nunca me esqueci das fotos do casamento "oficial" penduradas pelas paredes da gloriosa sala de visitas deles. Fotos em preto e branco, de tão antigas, com um ar retrô que eu amava. Um vestido de casamento lindo, que eu amava ainda mais.
Bom, se essa fosse a única esperança que eu pudesse ter sobre casamentos, ela tinha morrido.
Mas aí, num dia de bebedeira desenfreada noite a dentro, confessei, derramada em lágrimas, no ombro da minha melhor amiga, no banheiro de uma festa, que eu queria sim me casar e ter filhos e brincar de casinha e ser mamãe. Assim, do nada.
E Deus é quem sabe há quanto tempo eu vinha reprimindo tanta vontade em fazer diferente daqueles que me cercavam.
Mas junto com a confissão veio a desesperança. Eu saberia quebrar os padrões e o círculo vicioso do qual fazia parte? Ou estaria fadada a repetir os mesmo erros tão febris que não levam a nada? Eu achava, honestamente, que muito provavelmente não teria a chance de descobrir.
Tempos depois, o convite pra ser madrinha de casamento da minha melhor amiga. E aí vem a minha história favorita no mundo inteiro: eu, solteira, não queria participar da brincadeira do buquê. Não quero! Argumentei tantas vezes quanto pude, mas não houve acordo. "É claro que vai! É meu casamento, você é minha madrinha!". E eu fui.
Graças a Deus há vídeo pra comprovar a história. Muito embora eu seja tragicamente romântica (agora sem medo de assumir), eu jamais seria capaz de criar história tão maravilhosa.
Festa de casamento, todos dançam, todos cantam, se divertem, bebem. Chegou a hora do buquê da noiva. A esperança das necessitadas, o horror das de traumatizadas. Eu falei tragicamente romântica?
A noiva vendada, todas as solteironas em círculo, ansiando serem escolhidas à sorte! Gira a noiva, roda a roda. A noiva precisava escolher, no escuro, a quem dará o buquê. Passou o buquê no rosto de uma e virou as costas, passou em outra e saiu de perto. Chegou em mim... Aproximou o buquê e eu dei um passo pra trás. Ela insistiu e me agarrou pela roupa. Tirou a venda e deu pulos de alegria e surpresa. "Eu sabia que o buquê seria teu!". E eu fiquei ali, sem graça, o centro das atenções, a próxima a me casar. Ah tá, vai nessa.
E aí, eu o conheci, nessa mesma noite. Depois do buquê, lá pelas 4 da manhã. Passamos a noite inteira na mesma festa e nos conhecemos perto do fim.
Me chamou pra sair e eu aceitei, terrivelmente relutante, simplesmente por que não sabia dizer 'não'.
Duas semanas depois, estávamos namorando. E tudo o que eu não havia sentido da primeira vez, com o primeiro namorado, senti com ele. E parecia tão fácil. Eu gosto dele. O amo. E só do que precisamos pra estarmos bem.
Peeen! Errado.
Altos, baixos, altos, baixos. Um ano depois: um término. Seis meses do mais puro e simples sofrimento. Aparentemente, só amar não era mesmo o suficiente.
Ambos tivemos tempo pra reflexão, amadurecimento e etc. Um belo dia, decidimos que merecíamos uma segunda chance. E nos demos.
Aprendemos a conversar, a discutir, a respeitar (embora ainda derrapemos aqui e acolá), a ceder, a insistir, resistir, persistir. De repente, eu vi que amor era quase secundário. Respeito teria de vir antes. Paciência teria de vir antes do respeito. Teríamos que ter cuidado com a paciência. E teríamos que resistir no cuidado. E persistir no cuidado, mesmo que a vontade do momento seja mandar o cuidado pro inferno.
Logo notamos que estávamos fazendo planos pra filhos. Três é o suficiente, ele diz. Mas eu insisto que quero quatro. Ele retruca dizendo pra termos pelo menos o primeiro.
Mais planos, mais algum tempo e aí... Casamos.
"E dizia que nunca ia casar", provocou a minha mãe. E não ia mesmo não. Mas aí eu senti a esperança de que poderia ser diferente dos meus antecessores, principalmente por que o meu bonito também queria ser diferente dos seus. E também queria o mesmo que eu.
Mas, de novo, esse querer não é o suficiente se você não luta por ele.
Ultimamente, eu vejo um pessoal bem bobo dizendo que amor não é luta. Amor não é luta não, mesmo. Relacionamento é que é. Casamento então, mais luta ainda. Mas a luta não é pra mudar o outro. É pra mudar a si mesmo.
Aliás, melhorar a si mesmo. Pra si e pro outro. Relacionamento é um grande acordo nacional, com supremo, com tudo (pra você ver a dimensão do tamanho do acordo que precisa ser feito). E precisa ser uma acordo que contemple ambas as partes.
Algumas brigas entram madrugada a dentro, por que precisam ser resolvidas antes do adormecer. Outras se estendem em forma de guerra fria por dias... E aí você percebe que é tudo perca de tempo. Há coisas muito melhores a se fazer a dois.
Enquanto eu escrevia esse texto, ele chegou! Tive que parar e só puder retomar horas depois.
Completamos nosso quinto mês de casados e coincidentemente, é Valentine's day.
Ele trouxe pizza e bolo de pote pra nós. Pra comemorarmos todas as pequenas vitórias sobre as batalhas que travamos todos os dias, juntos, às vezes na marra, às vezes com tristeza, às vezes sem certeza de que seremos capazes de atravessar esse deserto munidos apenas de fé. Fé em nós, no que sentimos, no que acreditamos ser capazes ou no que já fomos capazes de fazer antes!
E aí eu relembro de todos os casamentos que deram errado que eu conheço e antes me causavam tanta desesperança. Eu olho pra eles com olhos clínicos, buscando entender o que não fazer.
A gente não tem certeza se estaremos juntos amanhã. Isso já ficou claro pra ambos. O que sabemos é queremos estar. E estamos dispostos a fazer com que estejamos. Com fé.
Não é fácil. Às vezes, as coisas vêm como epifanias na minha cabeça, como esse texto.
Relacionamentos, definitivamente, não são fáceis. Aprendi à duras penas.
Se tivermos de ser forjados no fogo, feito ferro, seremos.
Mas não sei, não. Bolo de pote e pizza parecem fazer valer a pena.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Até onde é intuição? Como identificar o que é trauma? O que é paranóia?
Como saber pra qual voz se dá ouvidos? A que fala mais alto? A que parece mais sensata? Ou a mais descontrolada?
Sair correndo sem olhar pra trás ou ficar e ser adulta?
Conceder a si própria uma nova chance ou bater o pé pois nova-chance-é-desculpa-pra-novas-merdas?
Onde eu acho resposta pra minhas perguntas?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Motivos pelos quais a gente acha muito difícil amar alguém em determinadas ocasiões mas acontecem excessões

É segunda-feira, dia mundial do mau humor.
É segunda-feira, 9 da manhã. Dia mundial do "queria estar dormindo".

Segunda-feira, 9 da manhã, eu já peguei dois ônibus. Reza a lenda que ninguém é feliz pegando dois ônibus por dia, antes das 7 horas.

Tenho bolhas de calos estourando nos dois pés. Cientificamente comprovado que a dor dos calos estourando mexe com o juízo do ser humano.

Aquela dorzinha de cabeça que me tira do sério, já começou, e eu tô bufando.

Mas, ainda assim, eu penso que não tem como a vida ser ruim. Só por ter você.

Hierarquia do desejo

Senti o cheiro daquele perfume e já sabia quem se aproximava. Olhei para trás e realmente era ela, não que eu não soubesse. Vinha distraída, cabeça baixa, vários cadernos e pastas nas mãos. Parei no meio do corredor e esperei que ela chegasse ainda mais perto.
Quando ela ergueu os olhos e me viu ali, sorriu tímida. 
Trabalhávamos na mesma escola: eu, professor; ela, supervisora. Desde que a vi pela primeira vez, foi impossível não me sentir atraído. Ainda que eu já estivesse noivo. Os olhares dela não negavam e todos percebiam.
Ela chegou mais perto, a passos lentos, como quem está com medo de se aproximar. Parou na minha frente, eu não resisti e a puxei para uma sala vazia.
Todo o material que estava em suas mãos caiu no chão e quanto ela tentou se abaixar para pegá-los, eu a segurei contra a parede com firmeza e delicadeza ao mesmo tempo.
Ela fechou os olhos e quando abriu, nossos rostos estavam praticamente colados, no que ela sussurrou:
"Eu sou sua supervisora e você é comprometido". 
Se soltou de mim, juntou o material no chão e saiu andando.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Cama

Se a nossa cama falasse, contaria todo tipo de história.
Começaria com a nossa história completamente apaixonada, onde se despedir a cada noite era doloroso e assim íamos aos beijos, às juras, por muitas vezes provando do sabor um do outro, ainda tão novo e viciante, dado o nosso pouco tempo ainda juntos, até às 4 da manhã, trocando a noite pelo dia repetidamente.
Falaria das vezes que chegamos bêbados e dormimos profundo.
Todos os filmes e todos os episódios que assistimos.
As vezes que prometemos levantar cedo no dia seguinte e poucas vezes conseguimos cumprir.
Contaria das vezes que chorei copiosamente por mim mesma, às vezes por você, às vezes por nós. Algumas delas sem a sua presença.
Listaria os teus choros também! Sempre que te disse pra não segurá-los.
As confissões envergonhadas, os segredos compartilhados, piadas nem sempre boas.
Falaria do sexo muitas vezes animal, outras sagrado e cultuado como divindade. Silencioso ou barulhento. Embebido por vinho, por saudade, por medo de nos perder.
Acredito que nossa cama relembraria com certo azedume das vezes que dormimos sem dar boa noite por qualquer razão e nunca justificável.
Quando deitamos ouvindo música. Fazemos planos pra nós, filhos, carreira, viagens.
E quando você não sabe se vai ou se fica e a cama quer te dizer pra ficar, pois o peso é melhor equilibrado quando você tá junto. Mas a nossa cama não fala.
E ainda assim ela enumeraria todas as vezes que decidimos continuar. Que escolhemos continuar! E que escolhemos repousar nossas cabeças lado a lado, mesmo que naquele segundo não pareça ser o certo. E se orgulharia disso.
E por ser testemunha ocular, fiel, a única sabedora das verdades além de nós dois, acredito que quando o colchão for extremamente desconfortável, envelhecido como nós, ela aceitará que troquemos de cama. Ela saberá que somos capazes de nos refazer.