quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Estrada

A viagem era longa, já fazia três dias que estávamos na estrada. Mas não dá pra dizer que era de todo ruim: não tínhamos pressa e estávamos curtindo o momento.
Escureceu e estávamos passando por uma vilazinha tão pequena que nem dá pra chamar de cidade. Era um vilarejo.
Caía uma chuva absurda e o combustível do carro tava acabando. "Tamo indo só no cheiro da gasolina".
Decidimos que era melhor ficar ali mesmo, procurar um hotelzinho, abastecer e achar um lugar pra jantar.
Como disse, um vilarejo. E todos esses lugares ficavam exatamente um do lado do outro, sem exagero. Perfeito pra nós. Apenas umas poucas casinhas em volta. Parecia coisa de filme.
Abastecemos e descemos dar entrada na pensão. Nesse meio tempo, a chuva diminuiu e saímos pra jantar na churrascaria ao lado. Algumas pessoas estavam jantando e era como se tivéssemos sido a atração do lugar, atraindo todos os olhares.
Sentamos, fizemos o pedido pra uma moça simpática e aguardamos, conversando distraidamente.
A comida era bem boa. Uma carne molinha, bem temperada. Estávamos satisfeitos. O lugar era pequeno mas não era uma espelunca. À luz da lua, todo o vilarejo parecia simpático, até fofo.

No meio da nossa conversa, um gato saindo pela porta da cozinha me chamou a atenção. É que eu adoro gatos e parece que meus olhos são treinados para encontrá-los. Fiquei olhando o bichano no chão e, quando subi olhos, foi que vi aquilo.
Com certeza era o cozinheiro. Ele usava uma calça jeans, uma regata branca e um avental branco. E botas brancas de borracha. A roupa toda suja de sangue. Das carnes, eu supuz. Aparência velha, cansada, cabelos grisalhos, barba branca, bigode parecendo sujo. O cabelo todo desgrenhado. Ele andava mancando a perna direita e atrás dele vinham mais quatro gatos, talvez atraídos pelo cheiro de comida, de carne ou sangue.
Na mão esquerda trazia uma faca de açougueiro.
Ninguém no restaurante pareceu se impressionar, então supuz, novamente, que ele fosse conhecido de todo mundo, ainda mais o local sendo tão pequeno. Confesso que me deu um pouco de nojo ver a higiene dele tão precária.

Não deu muito tempo de pensar nisso quando vi a faca cortando o primeiro pescoço, de um dos meus amigos.

Fiquei inerte. Parecia que tudo acontecia em câmera lenta e eu não conseguia me mover. Olhei em volta e todos continuavam jantando normalmente. A única mesa com qualquer tipo de movimentação era a nossa. Senti uma mão me puxando, me tirando do meu transe e finalmente voltei a mim e vi meu amigo caído dentro do próprio prato e sangue escorrendo de litro. Minha outra amiga era quem tinha me puxado pra fugirmos. Entramos no carro, deixando tudo pra trás. Inclusive o nosso amigo.

É muita loucura. Num minuto a gente tava sentado jantando e no outro meu amigo tava morto. E agora eu tô aqui prestando o depoimento, senhor policial. A vila fica há nem 10 Km daqui, é só voltar pela BR. Nossas coisas ficaram no hotel, só conseguimos chegar no carro muito rápido e fugir.

"Realmente, é uma história muito interessante."

Senhor, eu tô em choque. Nem sei te dizer o que é estranho, o que é loucura, o que aconteceu direito. Parece que eu tô sonhando. Minha amiga não disse uma só palavra até encontrarmos esse posto policial e agora ela não pára de chorar. Eu nem sei o que fazer. Como dizer pros pais do Felipe que ele foi assassinado na nossa frente?

"Quanto a isso, você pode ficar tranquilo. Não será necessário dizer nada a ninguém. Ouviu que sua amiga parou de chorar? Segura a cabeça dela um instante. Você vai parar de falar também".




segunda-feira, 26 de novembro de 2018

É água, mano véi

Essa época entre novembro e dezembro é complicada. Chove quase todo dia. Pra gente que mora assim, perto do rio, fica perigoso, sabe? O bicho sobe demais, às vezes tira a gente de dentro de casa, alaga tudo, a gente perde tudo. Tem vez que acontece tragédia, tem gente que morre, até os bicho da gente morre também. Dá uma tristeza... E às vezes ele traz cobra. Deus me livre, tá repreendido bate na madeira. Cobra é bicho do cão. Tu viu lá no Éden, né.
Tô falando aqui mas tô erguendo os móvel que a água já tá entrando. Tenho pouca coisa mas é meu tudo. Moro só, comprei uma geladeirinha usada do cumpadi, um sofá marromeno pra Morena vir tomar uma cervejinha comigo, porque ninguém é de ferro, né? Eita que lá vem chuva!
Minha casa é bem alta já, que é pra prevenir, mas quando tá assim, a gente só sai de barco, de canoa.

Oxe, não me mudo, não! Aqui é meu lugarzinho. Não tenho condição de ir pra outro lugar, não, senhora. E mesmo se tivesse, que outro lugar desse mundo cabe um cabra que nem eu? Ignorante de escola, todo chucro. Deixa eu aqui mesmo... melhor passar vinte dia na casa do cumpadi do que o resto da vida fora de minha terra.
Depois que a primeira mulher me deixou por causa daquele peão safado, num quis mais saber de casar, não. A mulher do cumpadi diz que eu fiquei amargo... eu acho é graça, fiquei amargo não. Tô é passado na casa do alho. Ela diz pra eu me casar com a Morena logo... eu gosto dela, ela de mim, e a gente véve bem cada um no seu canto. Gosto da minha tranquilidade e ela gosta da dela. Deixe assim... Na casa dela a água não chega, mas eu não quero ir pra lá, não... vai que eu gosto e quero ficar de vez? Vai que ela desgosta também e me manda passear? Num tô doido! Rapaz, marré água, mano véi...

Na canoa eu só levo uma sacola de roupa, pra modo de me trocar e uma rede pra atar na área do cumpadi, onde que eu durmo. As outras coisa da casa eu atrepo tudo; improviso uns cavalete com ripa e pernamanca e dá de aguentar.
Eu até sei nadar, mas essa correnteza é tão perigosa, né fia? Ainda mais com chuva assim. A alagação veio cedo esse ano... A filha do cumpadi disse que aqui no nosso estado que o pessoal fala alagação; que o certo é alagamento. Esse povo é muito é besta, cheio das goma. Deu de entender? Então tá bom.

A senhora se segura, não imaginei que ia pegar essa chuva, não... Mas também, era sair ou ficar a noite toda com água até a canela em casa, sozinho e no escuro, pois até a luz já foi desligada. Pura bucha.
A chuva tá engrossando, Dona... Já tá arrependida de me acompanhar até aqui, né não? Pois olhe só, eu também estaria. A gente faz o que dá.
Jesus amado, a correnteza tá muito forte, que Deus ajude nóis. Num tô conseguindo manter o barco. Meu senhor todo poderoso a gente vai virar...

Cumpadi do céu!!! Se eu lhe contar, tu não acredita nunquinha, mas eu juro por tudo nessa vida, pela minha mãezinha que me olha do céu. Foi ela que me mandou esses anjo pra me salvar. Mas antes de eu lhe contar, pegue a coitada da Dona, foi a única galinha que deu de salvar, dê um cadinho de milho à ela, seque a bichinha. Quando eu acordei na beira da água, lá tava a pobre da Dona ciscando... E me arrume uma muda de roupa e um cantinho pra dormir; a sacola de roupa e a rede o boto deve fazer bom uso.

Cumpadi, começou a ventar demais, cumpadi. A correnteza muito forte, a chuva engrossou demais do caminho. Só eu e Dona naquele barco conversando. Começou um vendaval, o diabo do barco virou... Cumpadi... tu sabe que eu nado, mas tava impossívi demais. Eu tentava subir e a água me puxava pra baixo, eu subia e via a pobre da Dona boiando. Cumpadi, foi Deus, não é possívi. Agora se eu te contar, tu não acredita. Apareceu uma canoa, cumpadi. Uma canoa, no meio daquele aguaréu, e a bicha nem se balançava na água. Tinha um homem na canoa e eu pensei que era Jesus vindo me buscar em pessoa, tava crente que ia morrer, cumpadi...

Tu acha que tá estranho até aí, então escuta o resto: o cara me puxou da água e me jogou no barco, me sentei cuspindo muita água. Vou te dizer, cumpadi, o dizer que pobre só enche barriga quando se afoga, é verdade mesmo. Agora eu tô rindo, mas na hora, cumpadi... Me arrepio todo. Me dê um café quente pra eu me esquentar e um pano pra eu me enxugar que já te conto o resto, pelo amor de Deus.

Depois que a gente pensa que viu a morte de perto, até um simples café é bênção. Brigado, cumadi, tá bom demais. Se sentem, pra não correr o risco de cair quando eu contar. O homem me jogou na água e a Dona já tava no barco, a bichinha. E tinha sabe o que mais lá dentro com o homem e a Dona? Cumpadi, pela graça de Deus, tinha três menino. Na hora eu pensei que esse homem só pode ser abestado, botar as criança em risco, mas né? Acabou de me salvar... Cumpadi, eu não atinei. Que eu me sentei, cocei os olho pra desembaçar a vista; eu só podia tá vendo miragem. Cumpadi era o seu Vilso. Ora "que Vilso?". O catraieiro! Esse memo, cumpadi. Fiz essa mema cara. Chega eu pensei em pular do barco de volta. Olhei pras criança e era os dois menino da Marta, mais o menino da Tonha. Cumpadi, eu tô todo arrupiado.

Tu tem noção do que aconteceu com eles, cumpadi? Claro que tu tem, correu na boca de todo mundo. Sim, cumpadi. O Vilso tava atravessando os menino pra escola, tava chovendo e caiu um raio no barco e matou os quatro. Isso mesmo. Morreu os quatro. Nesse memo rio ingrato que virou meu barco. O sangue de Jesus tem poder, agora me diga: morreram e tavam lá. Quando eu percebi o que era que eu tava vendo, puff! Apaguei. Acordei na beira da água já, no seco, a Dona perto de mim. Num tinha barco, nem Vilso, nem menino. Só eu, a galinha e a chuva. Se essa galinha falasse, ela ia te dizer que é tudo verdade. Bebi muita água e afetou meu célebro nada cumpadi, lá sou homem de inventar história?

Olha cumpadi, tu acredita se quiser. Me arrume uma roupa pra eu me trocar. Eu ia trazendo Dona pra gente fazer uma canja, mas agora ninguém trisca em Dona. Deixe a bichinha aí, ela sabe o que eu vi.
Baixando a água, eu vou acender uma vela pro Vilso e pros menino. Foram eles que me salvaram, eu tenho certeza.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Saci

Hoje é dia do Saci, 31 de outubro, e não tem quem não saiba quem é o Saci Pererê.
Personagem do folclore brasileiro, o Saci é um garoto negro, que só tem uma perna. Usa um short vermelho, gorro vermelho e fuma um cachimbo, pulando de cá pra lá. Dizem que é muito danado. Assusta os bichos na fazenda, dá nó na crina dos cavalos, faz uma zona! A questão aqui é: eu vi o Saci.

Eu tinha cerca de 5 anos. Ainda morava em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, logo antes de vir embora pro Acre.
Era um dia quente, muito comum do lugar. Morávamos num quarteirão. Me lembro com detalhes do lugar: casa pequena, branca, com as vistas das portas e janelas pintadas de vermelho. O portão do condomínio era vermelho, de correr, todo fechado. A janela da sala ficava ao lado da porta de entrada e, numa mesinha baixinha, embaixo da janela, tínhamos uma tv de tubo de 14 polegadas (tivemos essa tv até um dia desses). Típico do pantanal, pernilongo vinha de balde; então todas as janelas eram teladas com aquelas telas verdes que eu nunca vi aqui no Acre.
Meus pais trabalhavam vendendo sorvete e eu e o Lucas, meu irmão mais novo, ficávamos com uma babá.

Lembro que eu estava deitada no chão, de frente pra tv, só de calcinha. A babá estava no sofá dando iogurte pro Lucas, que na época tinha menos de 3 anos. Na janela, atrás da tv, apareceu a criatura. Negro, de gorro, o cachimbo em uma das mãos e ele tava segurando na beirada na janela. Fiquei olhando e logo ele disse "Marinara!", num tom muito travesso. Diabolicamente travesso.
Fiquei esperando que ele saísse da janela e passasse pela porta que estava aberta, mas ele simplesmente sumiu. Do jeito que veio, foi.

Minha mãe acredita que eu acredito. Não me lembro de sentir medo. Mas anos depois, eu passei a ter muito medo de todas as coisas que eu via relacionadas à ele. Eu tinha pavor dos livros sobre folclore e odiava imagens do Saci. Hoje não me importa mais se acreditam e também não tenho mais medo. Mas eu sei o que eu vi naquela tarde.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Eu queria que todo mundo pudesse ter conhecido o meu avô.
Ele é, com toda a certeza do mundo, a pessoa mais bondosa que eu já conheci.
Sempre foi muito amoroso com os netos, apaixonado pelas filhas e derramado pelo único homem entre as cinco mulheres da prole e ainda o caçula.
Meu avô era a personificação da brandura. Em 24 anos da minha vida, eu nunca o vi murmurar, se queixar. Nem nos dias mais difíceis da doença, enquanto lúcido. Como o senhor tá, vô? "Ah ta bão. Tem que tá ruim mas tá bão também".
Minha mãe e a tia mais velha confirmaram que nunca viram ele e a vó brigar. Nunca, por nada. A não ser pelas vezes que a vó exagerava nos corretivos e ele odiava ver ela judiando das meninas.
A alegria dele era ver a vida brotar. Criava um pouco de gado e ficava todo faceiro e apaixonado sempre que um bezerrinho nascia. Carinhoso com os gatos da casa, com os cachorros. Não canso de dizer, um homem sem igual.
Nesse momento de luto, as opiniões sobre ele são unânimes. "Sempre gentil, sorridente, cumprimentava todos os vizinhos. Muito educado." Ele dizia que café e bom dia não se nega a ninguém. Que Deus me ajude a levar isso pro resto da minha vida.
Aliás, Deus era amigo dele. E se alguém merece estar no colo do Pai agora, é o seu Vicente. A fé o mantinha de pé. Nem nos dias mais difíceis, como Jó, nunca sequer perguntou o por quê do sofrimento.
Conversando com os parentes, chegamos a conclusão de que não tem uma pessoa nesse Quinari que possa falar algo de ruim do vô. Ele não magoou ninguém, não machucou ninguém, não foi rude, nunca deu um bom dia atravessado.
Não existe ninguém como ele.
Meu avô era surreal de bom. Espero que vocês tenham a oportunidade de conhecer alguém como ele um dia. Mas eu acho difícil.
O médico dele falou que nunca teve um paciente com tanta dignidade como meu avô. Muito amado e bem cuidado pelos filhos.
Um amigo me disse que meu avô criou uma mulher incrível que é a minha mãe e ela foi capaz de criar três pessoas incríveis que somos eu e meus irmãos. E esse é o maior legado dele. Nós, filhos e netos educados, responsáveis, honrados. Vou lembrar disso pra sempre.
Mesmo muito triste, tô aliviada. Ele merecia descansar. Os últimos meses foram muito difíceis. A teimosia dele, às vezes, deixava a gente de cabelo em pé, mas cada minuto com ele foi precioso.
E eu me sinto muito feliz por ter tido a oportunidade de conhecê-lo e chamá-lo de vô. Tê-lo perto e ter puxado dele a tara por doces.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Gêmeas

"Ai nossa, mas vocês são gêmeas?" Era a pergunta mais idiota de todas. Duas meninas, com a mesma idade, 17 anos, fisionomia idêntica, que se chamam Isabela e Rafaela, não precisa ser nenhum gênio pra perceber que são univitelinas.
"Se o pai e a mãe pelo menos fossem criativos nos nomes. Ainda bem que a gente não precisa mais se vestir igual. Coisa de gêmeo retardado" Rafaela resmungava enquanto seguiam o caminho de casa. Depois de tanto ouvirem perguntas sobre o parentesco, elas nem se davam mais ao trabalho de responder. Geralmente, só sorriam sem vontade.
"Bom, a gente é gêmea. A parte do retardo fica por sua conta mesmo", Isabela retrucava em provocação.
A rotina das meninas não era nada anormal. Namoradinhos, festinhas, colégio, etc etc.

Um fim semana desses, os pais estavam completando bodas de alguma coisa e iam sair pra comemorar, passariam o a noite de sexta, sábado e domingo num município próximo, numa pousada ecológica no meio do mato. A relação dos dois era muito admirada pelas meninas. Se portavam como se fossem ainda namorados, nos tempos de colégio. A família era feliz.
"Vocês tenham juízo, se cuidem, qualquer coisa liguem no telefone fixo da pousada. Tá na porta da geladeira. Blablabla amamos vocês", a mãe dizia rindo. Confiava nas filhas, não era preciso fazer proibições, apenas pedia que tomassem cuidado.
Noite de sexta, sozinhas, vão pra festas, certo? Errado! Tinham planos pro dia seguinte e resolveram descansar, afinal, sexta também é dia útil, teve aula e cursinho preparatório pro Enem.
Apesar de gêmeas, as únicas meninas, cada uma tinha seu quarto. Direito conquistado com muita luta pelas duas, na hora de convencer os pais.
"Pai, somos duas. Somos muito diferentes, ainda que muito amigas. Temos gostos distintos. Vou até usar palavras difíceis pra te convencer. Olha pra Rafa, toda bailarina frufru e eu não posso ver uma bola que quero meter a bicuda", Isabela argumentava.
"Você tá certa, eu concordo", o pai segurava o riso. A garota tinha 13 anos e cheia de determinação.
"É verdade, pai. Preciso do meu próprio espaço, de privacidade. Libera o quarto de tralhas pra Isa", Rafaela pedia quase se ajoelhando, com as mãos juntas na frente do rosto. Sempre foi mais dramática.
Comemoraram com pulinhos a decisão positiva dos pais. Ambas decoraram os quartos juntas. Num acordo, decidiriam que Rafa ficaria no quarto menor, mas com banheiro, e Isa no quarto maior, sem banheiro. Dormirem separadas não eram ruim a ponto de sentirem falta uma da outra, mas também não achavam bom por que dormir com a outra era ruim. Só estavam crescendo.

Perto da meia noite, trocaram boa noite e até amanhã e cada uma pro seu quarto.
Perto das 5 manhã, Rafaela levantou assustada. Um pesadelo a tirou da cama.

No pesadelo, ela tinha sido amarrada por um homem com rosto muito familiar, mas não se lembrava de onde. Ele a amarrava uma cadeira e dava tapas em seu rosto. Ela não entendia a razão de estar apanhando. Ele lhe dava puxões de cabelo, socos na cabeça, tapas na cara e ela chorava muito pedindo pra que ele parasse. O cabelo estava todo desgrenhado, o nariz sangrava, a boca estava inchada pelas porradas, o lábio cortado,  a cara lavada de lágrimas. Depois de espancamento, ele a soltou e a deixou acreditar que a soltaria.
Quando deu o primeiro passo pra correr, foi atingida na cabeça. Uma barra de ferro talvez. E apagou.
A partir daí, era como se Rafaela assistisse a si mesma de fora do corpo. Ela estava imóvel, caída no chão, o homem a olhava sorrindo. Virou de costas e foi até uma bancada cheia de coisas. Que porra de lugar era aquele? A Rafaela que assistia tudo acontecer olhava em volta e não reconhecia nada. Parecia ser um galpão, um barracão, uma garagem velha, uma oficina...
O homem voltou da bancada e tinha um serrote nas mãos. Mas que diabo é isso? Rafaela, a que assistia, tentava gritar, mas era como se ela fosse só uma projeção, uma alma saída do corpo. Tinha morrido? Ela teve a resposta quando o homem começou a serrar seu pé, o pé da Rafaela no chão, a sangue frio, como quem serra uma tábua numa marcenaria e o corpo no chão permanecia imóvel. Havia morrido num lugar sujo, espancada por alguém que não conseguia se lembrar quem.
E acordou do pesadelo.

Suada, ofegante, chorando um pouco, Rafaela acordou num pulo. Aos poucos foi recobrando os sentidos e percebeu que tinha sonhado. Se acalmou, levantou, percebeu que havia feito xixi na cama. Seu corpo inteiro estava dolorido como se realmente houvesse sido espancada, tal qual no sonho. O pé serrado no sonho doía que mal se podia firmar no chão.
"Eu ainda tô sonhando, não é possível um caralho desse", praguejava enquanto ia  pro seu banheiro tomar um banho. "É tudo psicológico, pesadelo imundo do inferno, até mijar na cama eu mijei. Que ódio". Rafaela era sensata, não ia fazer alarde por causa de pesadelo. Não era a primeira que sonhava coisas ruins. Tomou banho, trocou os lençóis, forrou o colchão mijado e voltou a deitar. "Se eu falo pra Isa que mijei na cama, vai ser uma vida de inferno e zoação. Melhor ficar por aqui mesmo. Já basta o estresse do sono atrapalhado".

Sábado de manhã, Rafaela acordou perto das 10 da manhã. Demorou a pegar no sono, mas conseguiu. Saiu do quarto, deu uma batida da porta da Isa, "levanta peste!" e foi pra cozinha. Na porta da geladeira junto com o número do telefone fixo da pousada onde os pais estavam, havia um bilhete:

"O Pedro me ligou e tô indo passar a noite com ele, não quis te acordar. Volto pro almoço, te amo".

"Mas tem que ser muito quenga pra sair de casa de madrugada por causa de macho". Mas tudo bem, não era a primeira vez. Pedro era legal, gente boa. Isa e Pedro não namoravam, mas ele andava na casa das meninas e os pais dela gostavam dele. Menino velho, de 17 anos, da turma das garotas.
Rafa ajeitou uma vasilha cheia de Nescau cereal com leite gelado, pegou uma colher e foi sentar no sofá pra ver tv enquanto comia e esperava a bonita voltar da noite de amor.
Ligou a tv e as primeiras imagens que viu eram de um lugar grande, mas abandonado. Por um segundo, achou que era uma daquelas cenas de Supernatural, quando os vampiros prendem ou o Sam ou Dean num lugar abandonado e rola todo aquele blablabla de série. Continuou assistindo pois amava Supernatural e Dean Winchester é o cidadão mais gato do planeta terra.
Rafa começou a reconhecer o lugar e viu que era o mesmo do pesadelo. Não era Supernatural coisa nenhuma. Era o jornal da manhã.

"Adolescente é encontrada esquartejada em barracão abandonado".

A essa altura, Rafaela já estava desesperada, aos berros discando o número do fixo da pousada, enquanto a foto da identidade de Isabela aparecia no jornal.

"Um suspeito foi identificado. O homem é vizinho da vítima e se mudou pro atual endereço há apenas três dias".

O mundo de Rafaela caiu. O homem do sonho era o novo vizinho esquisito.

Rafaela não só sonhou.

Todo mundo sabe que um gêmeo sente tudo o que o outro sente.

Matadouro Pantanal

Fabiano era um rapaz novo, 26 anos. Tinha começado a trabalhar no matadouro fazia pouco tempo, coisa de meses. Tinha vindo do interior do Ceará tentar uma vida melhor na terra da borracha, mas tudo o que ele conseguiu foi o trabalho no matadouro clandestino. 
Ele fazia parte da equipe de abate. Todo mundo percebia uma certa frieza em Fabiano. Desde o primeiro dia no novo emprego, ele nunca havia sequer pestanejado uma única vez antes de degolar uma vaca. Sim, degolar. Sendo clandestino, o matadouro não prezava muito pela qualidade, cuidado e principalmente na dignidade dos bichos.
Os mais antigos diziam que a frieza que Fabiano tinha no abate, só era adquirida com anos naquele trabalho ingrato. "Esse menino, sei não... Eu acho ele esquisito" dizia o seu Onofre. "Pior se ele ficasse frescando na hora de matar, era mais trabalho pra gente" rebatia algum resmungão preguiçoso. "Ele gosta de matar, tem prazer", seu Onofre dava a sentença.
Fabiano não fazia questão de agradar os colegas de trabalho, nem de ser simpático, nem de nada. Tinha dias que entrava mudo e saía calado, tinha dias que era todo engraçadinho, tirador de sarro do pior tipo, tirava os outros do sério, e tinha dias que parecia uma máquina de matar boi. Era imprevisível, não dava pra saber como ele chegaria naquele dia. Os outros apenas se entreolhavam e deixavam pra comentar depois do expediente, no boteco. "Rapaz, hoje o trem ruim tava no couro dele". "Cuida da tua vida, homem. Se ele fica sabendo que a gente fala dele, tu já pensou? Dizem que ele veio fugido pra cá. Matou um pessoal por lá pelo Ceará e agora tá aqui, tu quer brincar com homem que mata?", alguém respondia. "Como que dizem se ele veio sozinho, criatura? Ninguém nem sabe nada do cidadão".

Seu Osvaldo era um jovem senhor, 56 anos. Era muito gentil, compadre do seu Onofre, não queria ter que ir pro seringal com a esposa e duas crianças pequenas anos antes. Seu Onofre foi quem conseguiu o trabalho pra ele no matadouro. Ele não gostava, mas que opção tinha? "Ir pro meio do mato com os meninos? Num dá, a mulher me deixa. Pelo menos aqui, tem carne em casa todo dia". Seu Osvaldo trabalhava ali por necessidade, ele se compadecia do sofrimento dos bichos, não gostava de ver nem de ouvir os mugidos cheios de agonia. Ele dizia que o matadouro fedia a sangue e morte. "Valdo", dizia seu Onofre, "é um matadouro, tu queria o que? Colônia de lavanda?". Valdo queria outro trabalho, mas as chances estavam contra ele. Ali ele ia pra casa todo dia, ganhava o suficiente pra manter a casinha de madeira muito bem cuidada por dona Alda, a esposa, tinha carne todo dia, que era uma espécie de cortesia do patrão, tava na cidade e a idade já pesava. Odiava o mato. 
Com certo tempo de trabalho, ele tinha conseguido pequenas promoções e agora trabalhava no setor de despacho. Não participava do abate e nem via os animais serem mortos, não precisava mais limpar, abrir, nem cortar nada. "Aqui até que é bom, dá pra levar".

Numa quarta-feira comum de trabalho, seu Osvaldo levantou cedinho da madrugada, 4 da manhã. Tinha que estar no matadouro às 6. Dona Alda levantou junto e, enquanto seu véio tomava banho no banheiro do lado de fora da casa, passou um cafezinho. "Ô cheiro bão tem esse café da véia". Logo seu Onofre gritou no portão para seguirem juntos e seu Osvaldo deu um beijo no rosto de dona Alda, se despedindo: "hoje é dia de trazer carne, no fim de semana a gente assa alguma coisa pra comemorar o aniversário da menina". A filha do casal completaria 14 anos na sexta-feira.

Fabiano chegou no matadouro e todo mundo percebeu que ele tava meio enfezado. Mas nada anormal. Segue o dia. 

Seu Osvaldo planejava o aniversário da filha enquanto ajeitava os cortes de carne pro despacho. "Chama o Nofre mais a véia, os quatro menino dele... Será que Luisa tem algum coleguinha da escola pra chamar?". E tira do gancho mais uma costela, pronta pra despachar. Segue o dia.

Tudo seguia normalmente até que seu Osvaldo ouviu gritos de gente dizendo "pára", "não", "tá doido" e mugidos das vacas. Todo mundo correu pra ver o que era e seu Osvaldo foi junto.

A cena era absurda. Fabiano estava possesso. Esfaqueava uma das novilhas sem parar. A coitada gritava em agonia, desespero e dor. A outras na fila de abate pareciam sentir a mesma dor e estavam extremamente agitadas. O que diabos estava acontecendo?

"A novilha deu trabalho pra entrar, ele perdeu o controle. Esse homem é louco, bem que eu falo, todo mundo fala", Felício parecia desesperado. Ninguém se atrevia a tentar parar Fabiano. As pessoas só olhavam. Ele estava coberto de sangue, sangue espirrava pra todo lado, o chão estava em poças. "Dá logo um golpe final, acaba com isso, criatura", gritava seu Onofre. Fabiano não ouvia. Os olhos brilhavam, ele parecia gostar do que estava fazendo.

No impulso, seu Osvaldo correu na direção de Fabiano. Todos paralisaram.
Seu Osvaldo puxou Fabiano pelos ombros e num movimento rápido, Fabiano se virou e enfiou a faca no peito de seu Osvaldo.

E puxou até o pé da barriga.

Abriu seu Osvaldo tal qual faziam com os bois pra tirar a buchada.

A novilha agonizava de um lado do chão e seu Osvaldo do outro. A cena era monstruosa. Havia tanto sangue...
Alguns homens correram na direção de Fabiano e conseguiram tomar a faca dele, mas agora era tarde. 
Outros nem conseguiram sair do lugar, vomitaram ali mesmo, nos próprios pés. Quem haveria de imaginar algo como aquilo?

Seu Osvaldo ouvia as histórias sobre Fabiano mas não dava importância, achava que os colegas falavam demais, muito exagero. Muita conversa pra pouco trabalho.

O resto é história. Homens que testemunharam diziam coisas de todos os tipos.

"Ele tava possuído, aquilo é obra do diabo. O sangue de Jesus tem poder. Deus me livre. Que Deus receba seu Osvaldo", dizia Alessandro, um rapazinho vindo do interior, bastante religioso. Perdeu as contas de quantas vezes fez o sinal da cruz.

"Aquilo é droga, só pode ser droga", Antônio dizia com convicção.

Seu Onofre passou a cuidar da família do amigo e compadre, dona Alda e os dois filhos. Muitos não voltaram mais para trabalhar no frigorífico. A fama correu e o lugar, em pouco tempo, quebrou, faliu.

Fabiano, Deus é quem sabe por onde anda, andou. Sumiu no meio alvoroço. O boato é de que ele voltou pro Ceará. 

Hoje o lugar é só uma ruína, o mato tomou de conta. Quem passa de ônibus das linhas do Calafate consegue ver a antiga fachada sofrida com a ação do tempo no meio do mato. Dizem que se você andar por ali, nas quartas-feiras, você ouve os mugidos desesperados dos animais e logo depois ouve uma voz mansa dizendo "calma, já acabou". E se você tiver coragem de continuar, depois de ouvir, pode ver seu Osvaldo caminhando com uma linda novilha branca do lado, enquanto ele faz carinho na cabeça dela.

Dá pra dizer que o lugar é mal assombrado ou bem assombrado?

domingo, 12 de agosto de 2018

Uma crônica sobre intimidade

Era sexta-feira a noite e o clima não era dos melhores: eu tinha acabado de passar por uma tentativa de assalto. Ele foi me buscar, onde eu tava abrigada depois do susto. Me levou pra jantar, me acalmou, me levou pra casa. Me esperou tomar banho e deitou comigo.
Passado o susto, estávamos rindo do ladrão que ainda teve a audácia de me chamar de burra. Sinceramente...
Conversamos sobre muitas coisas, sobre nada importante. Nos abraçamos e nos beijamos.
Os beijos começaram a arder e não demorou para que começássemos a transar.

Ora, porra! Um casal que transa, né?!

Sem detalhes até aqui, babies!

Lá pelas tantas, senti que meu corpo não respondia do jeito que eu queria que fosse. Talvez ainda fosse a tensão pelo susto. Pedi para pararmos pois não me sentia bem. Ele foi me buscar um copo d'água e depois nos deitamos novamente. Conversamos mais um pouco e, quando me dei conta, estávamos os dois nus, cada um com o seu respectivo celular: eu mostrava um vídeo de gatinho pra ele e logo em seguida ele me mostrou um vídeo de um quase gol num jogo de futebol.
Comentei nossa situação e rimos.

Nossa intimidade é tão gostosa, tão leve... Penso que não conseguiria fazer as mesmas coisas em qualquer outro relacionamento. Somos cem por cento honestos conosco perto um do outro. Não há fingimento, nem pose, nem disfarces e máscaras. Falamos de sexo na hora no almoço e de cocô depois do sexo... Compreendo que não é todo mundo que tem estômago, mas acho que é mais que isso.

A intimidade do meu quase casamento é uma das melhores partes dele. Se eu tivesse de listar cada situação no mínimo cômica, nunca mais seríamos vistos com os mesmos olhos. Ou talvez não. Quem conhece a gente, mesmo de longe, é capaz de nem se surpreender. Se a gente não se esconde um do outro, imagina da sociedade!

sexta-feira, 13 de julho de 2018

atrofia

Eu fiz uma cirurgiazinha, coisa pouca. Caso de dois pontos em cada mão e já.
Foram 7 dias de curativos, 10 dias até tirar os pontos e depois mais uns 3 ou 4 dias usando um bandaid até a ferida terminar de fechar.
O problema agora é que o dedos cirurgiados meio que atrofiaram pela falta de uso, pela imobilização pra não correr o risco de estourar algum dos pontos. Preciso exercitá-los, puxá-los pro lugar aos poucos e dói bastante. Não é grave, é normal, vai normalizar e ficar tudo bem.

Fiquei pensando, como sempre estou pensando.

Determinadas coisas, pessoas e situações precisam ser removidas cirurgicamente, no sentido figurado, óbvio, da nossa vida, rotina, mente... mas não é só tirar e pronto: tem o pós operatório, tempo de cicatrização, é ruim, a gente sofre um pouco, às vezes rola uma atrofia, que é foda.
É muito cômodo deixar o dedo torto pra sempre, mas não é nada funcional, me atrapalha numa série de coisas.

É um exercício diário, dolorido, esse estica e puxa. Mas é necessário e benéfico. Se exercitar mente e coração, a atrofia reverte e fica tudo bem de novo.


O pé na cova sempre existiu. Sempre.
Às vezes ele se manifesta de forma branda, no "ô vontade de morrer e ninguém ajuda". Noutras, ele vem latente. Aparece no dirigir, ao visualizar a frente de um caminhão, um poste. No atravessar da rua sem olhar pra lado algum e simplesmente ir.
"Quantos remédios são necessários além do necessário?"
Algumas pessoas adoram dizer que são apaixonadas pela vida. Bem, aqui nunca houve paixão, mas não deixa de existir o medo.
De ceder.
De ouvir a vozinha que ladra "se taca nesse caminhão logo de uma vez. Se poupe, querida. Poupe todos nós. Faça o favor."
Não sei no que eu me agarro. Não consigo determinar um sentimento que possa dizer "é por isso aqui que eu não abro mão de tudo. É por esse motivo que continuo aguentando. É por esse motivo que eu aumento o volume da música sempre que a voz começa."
Mas tem alguma coisa. Ou não teria abandonado o cigarro. Eu só não sei o que é. Mas tem.
Mas eu não sei o que é.