quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Matadouro Pantanal

Fabiano era um rapaz novo, 26 anos. Tinha começado a trabalhar no matadouro fazia pouco tempo, coisa de meses. Tinha vindo do interior do Ceará tentar uma vida melhor na terra da borracha, mas tudo o que ele conseguiu foi o trabalho no matadouro clandestino. 
Ele fazia parte da equipe de abate. Todo mundo percebia uma certa frieza em Fabiano. Desde o primeiro dia no novo emprego, ele nunca havia sequer pestanejado uma única vez antes de degolar uma vaca. Sim, degolar. Sendo clandestino, o matadouro não prezava muito pela qualidade, cuidado e principalmente na dignidade dos bichos.
Os mais antigos diziam que a frieza que Fabiano tinha no abate, só era adquirida com anos naquele trabalho ingrato. "Esse menino, sei não... Eu acho ele esquisito" dizia o seu Onofre. "Pior se ele ficasse frescando na hora de matar, era mais trabalho pra gente" rebatia algum resmungão preguiçoso. "Ele gosta de matar, tem prazer", seu Onofre dava a sentença.
Fabiano não fazia questão de agradar os colegas de trabalho, nem de ser simpático, nem de nada. Tinha dias que entrava mudo e saía calado, tinha dias que era todo engraçadinho, tirador de sarro do pior tipo, tirava os outros do sério, e tinha dias que parecia uma máquina de matar boi. Era imprevisível, não dava pra saber como ele chegaria naquele dia. Os outros apenas se entreolhavam e deixavam pra comentar depois do expediente, no boteco. "Rapaz, hoje o trem ruim tava no couro dele". "Cuida da tua vida, homem. Se ele fica sabendo que a gente fala dele, tu já pensou? Dizem que ele veio fugido pra cá. Matou um pessoal por lá pelo Ceará e agora tá aqui, tu quer brincar com homem que mata?", alguém respondia. "Como que dizem se ele veio sozinho, criatura? Ninguém nem sabe nada do cidadão".

Seu Osvaldo era um jovem senhor, 56 anos. Era muito gentil, compadre do seu Onofre, não queria ter que ir pro seringal com a esposa e duas crianças pequenas anos antes. Seu Onofre foi quem conseguiu o trabalho pra ele no matadouro. Ele não gostava, mas que opção tinha? "Ir pro meio do mato com os meninos? Num dá, a mulher me deixa. Pelo menos aqui, tem carne em casa todo dia". Seu Osvaldo trabalhava ali por necessidade, ele se compadecia do sofrimento dos bichos, não gostava de ver nem de ouvir os mugidos cheios de agonia. Ele dizia que o matadouro fedia a sangue e morte. "Valdo", dizia seu Onofre, "é um matadouro, tu queria o que? Colônia de lavanda?". Valdo queria outro trabalho, mas as chances estavam contra ele. Ali ele ia pra casa todo dia, ganhava o suficiente pra manter a casinha de madeira muito bem cuidada por dona Alda, a esposa, tinha carne todo dia, que era uma espécie de cortesia do patrão, tava na cidade e a idade já pesava. Odiava o mato. 
Com certo tempo de trabalho, ele tinha conseguido pequenas promoções e agora trabalhava no setor de despacho. Não participava do abate e nem via os animais serem mortos, não precisava mais limpar, abrir, nem cortar nada. "Aqui até que é bom, dá pra levar".

Numa quarta-feira comum de trabalho, seu Osvaldo levantou cedinho da madrugada, 4 da manhã. Tinha que estar no matadouro às 6. Dona Alda levantou junto e, enquanto seu véio tomava banho no banheiro do lado de fora da casa, passou um cafezinho. "Ô cheiro bão tem esse café da véia". Logo seu Onofre gritou no portão para seguirem juntos e seu Osvaldo deu um beijo no rosto de dona Alda, se despedindo: "hoje é dia de trazer carne, no fim de semana a gente assa alguma coisa pra comemorar o aniversário da menina". A filha do casal completaria 14 anos na sexta-feira.

Fabiano chegou no matadouro e todo mundo percebeu que ele tava meio enfezado. Mas nada anormal. Segue o dia. 

Seu Osvaldo planejava o aniversário da filha enquanto ajeitava os cortes de carne pro despacho. "Chama o Nofre mais a véia, os quatro menino dele... Será que Luisa tem algum coleguinha da escola pra chamar?". E tira do gancho mais uma costela, pronta pra despachar. Segue o dia.

Tudo seguia normalmente até que seu Osvaldo ouviu gritos de gente dizendo "pára", "não", "tá doido" e mugidos das vacas. Todo mundo correu pra ver o que era e seu Osvaldo foi junto.

A cena era absurda. Fabiano estava possesso. Esfaqueava uma das novilhas sem parar. A coitada gritava em agonia, desespero e dor. A outras na fila de abate pareciam sentir a mesma dor e estavam extremamente agitadas. O que diabos estava acontecendo?

"A novilha deu trabalho pra entrar, ele perdeu o controle. Esse homem é louco, bem que eu falo, todo mundo fala", Felício parecia desesperado. Ninguém se atrevia a tentar parar Fabiano. As pessoas só olhavam. Ele estava coberto de sangue, sangue espirrava pra todo lado, o chão estava em poças. "Dá logo um golpe final, acaba com isso, criatura", gritava seu Onofre. Fabiano não ouvia. Os olhos brilhavam, ele parecia gostar do que estava fazendo.

No impulso, seu Osvaldo correu na direção de Fabiano. Todos paralisaram.
Seu Osvaldo puxou Fabiano pelos ombros e num movimento rápido, Fabiano se virou e enfiou a faca no peito de seu Osvaldo.

E puxou até o pé da barriga.

Abriu seu Osvaldo tal qual faziam com os bois pra tirar a buchada.

A novilha agonizava de um lado do chão e seu Osvaldo do outro. A cena era monstruosa. Havia tanto sangue...
Alguns homens correram na direção de Fabiano e conseguiram tomar a faca dele, mas agora era tarde. 
Outros nem conseguiram sair do lugar, vomitaram ali mesmo, nos próprios pés. Quem haveria de imaginar algo como aquilo?

Seu Osvaldo ouvia as histórias sobre Fabiano mas não dava importância, achava que os colegas falavam demais, muito exagero. Muita conversa pra pouco trabalho.

O resto é história. Homens que testemunharam diziam coisas de todos os tipos.

"Ele tava possuído, aquilo é obra do diabo. O sangue de Jesus tem poder. Deus me livre. Que Deus receba seu Osvaldo", dizia Alessandro, um rapazinho vindo do interior, bastante religioso. Perdeu as contas de quantas vezes fez o sinal da cruz.

"Aquilo é droga, só pode ser droga", Antônio dizia com convicção.

Seu Onofre passou a cuidar da família do amigo e compadre, dona Alda e os dois filhos. Muitos não voltaram mais para trabalhar no frigorífico. A fama correu e o lugar, em pouco tempo, quebrou, faliu.

Fabiano, Deus é quem sabe por onde anda, andou. Sumiu no meio alvoroço. O boato é de que ele voltou pro Ceará. 

Hoje o lugar é só uma ruína, o mato tomou de conta. Quem passa de ônibus das linhas do Calafate consegue ver a antiga fachada sofrida com a ação do tempo no meio do mato. Dizem que se você andar por ali, nas quartas-feiras, você ouve os mugidos desesperados dos animais e logo depois ouve uma voz mansa dizendo "calma, já acabou". E se você tiver coragem de continuar, depois de ouvir, pode ver seu Osvaldo caminhando com uma linda novilha branca do lado, enquanto ele faz carinho na cabeça dela.

Dá pra dizer que o lugar é mal assombrado ou bem assombrado?

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