Fabiano
era um rapaz novo, 26 anos. Tinha começado a trabalhar no matadouro fazia pouco
tempo, coisa de meses. Tinha vindo do interior do Ceará tentar uma vida melhor
na terra da borracha, mas tudo o que ele conseguiu foi o trabalho no matadouro
clandestino.
Ele fazia
parte da equipe de abate. Todo mundo percebia uma certa frieza em Fabiano.
Desde o primeiro dia no novo emprego, ele nunca havia sequer pestanejado uma
única vez antes de degolar uma vaca. Sim, degolar. Sendo clandestino, o
matadouro não prezava muito pela qualidade, cuidado e principalmente na
dignidade dos bichos.
Os mais
antigos diziam que a frieza que Fabiano tinha no abate, só era adquirida com
anos naquele trabalho ingrato. "Esse menino, sei não... Eu acho ele
esquisito" dizia o seu Onofre. "Pior se ele ficasse frescando na hora
de matar, era mais trabalho pra gente" rebatia algum resmungão preguiçoso.
"Ele gosta de matar, tem prazer", seu Onofre dava a sentença.
Fabiano
não fazia questão de agradar os colegas de trabalho, nem de ser simpático, nem
de nada. Tinha dias que entrava mudo e saía calado, tinha dias que era todo
engraçadinho, tirador de sarro do pior tipo, tirava os outros do sério, e tinha
dias que parecia uma máquina de matar boi. Era imprevisível, não dava pra saber
como ele chegaria naquele dia. Os outros apenas se entreolhavam e deixavam pra
comentar depois do expediente, no boteco. "Rapaz, hoje o trem ruim tava no
couro dele". "Cuida da tua vida, homem. Se ele fica sabendo que a
gente fala dele, tu já pensou? Dizem que ele veio fugido pra cá. Matou um
pessoal por lá pelo Ceará e agora tá aqui, tu quer brincar com homem que
mata?", alguém respondia. "Como que dizem se ele veio sozinho,
criatura? Ninguém nem sabe nada do cidadão".
Seu
Osvaldo era um jovem senhor, 56 anos. Era muito gentil, compadre do seu Onofre,
não queria ter que ir pro seringal com a esposa e duas crianças pequenas anos
antes. Seu Onofre foi quem conseguiu o trabalho pra ele no matadouro. Ele não gostava,
mas que opção tinha? "Ir pro meio do mato com os meninos? Num dá, a mulher
me deixa. Pelo menos aqui, tem carne em casa todo dia". Seu Osvaldo
trabalhava ali por necessidade, ele se compadecia do sofrimento dos bichos, não
gostava de ver nem de ouvir os mugidos cheios de agonia. Ele dizia que o
matadouro fedia a sangue e morte. "Valdo", dizia seu Onofre, "é
um matadouro, tu queria o que? Colônia de lavanda?". Valdo queria outro
trabalho, mas as chances estavam contra ele. Ali ele ia pra casa todo dia,
ganhava o suficiente pra manter a casinha de madeira muito bem cuidada por dona
Alda, a esposa, tinha carne todo dia, que era uma espécie de cortesia do
patrão, tava na cidade e a idade já pesava. Odiava o mato.
Com certo
tempo de trabalho, ele tinha conseguido pequenas promoções e agora trabalhava
no setor de despacho. Não participava do abate e nem via os animais serem
mortos, não precisava mais limpar, abrir, nem cortar nada. "Aqui até que é
bom, dá pra levar".
Numa
quarta-feira comum de trabalho, seu Osvaldo levantou cedinho da madrugada, 4 da
manhã. Tinha que estar no matadouro às 6. Dona Alda levantou junto e, enquanto
seu véio tomava banho no banheiro do lado de fora da casa, passou um cafezinho.
"Ô cheiro bão tem esse café da véia". Logo seu Onofre gritou no
portão para seguirem juntos e seu Osvaldo deu um beijo no rosto de dona Alda,
se despedindo: "hoje é dia de trazer carne, no fim de semana a gente assa
alguma coisa pra comemorar o aniversário da menina". A filha do casal
completaria 14 anos na sexta-feira.
Fabiano
chegou no matadouro e todo mundo percebeu que ele tava meio enfezado. Mas nada
anormal. Segue o dia.
Seu
Osvaldo planejava o aniversário da filha enquanto ajeitava os cortes de carne
pro despacho. "Chama o Nofre mais a véia, os quatro menino dele... Será
que Luisa tem algum coleguinha da escola pra chamar?". E tira do gancho
mais uma costela, pronta pra despachar. Segue o dia.
Tudo
seguia normalmente até que seu Osvaldo ouviu gritos de gente dizendo
"pára", "não", "tá doido" e mugidos das vacas.
Todo mundo correu pra ver o que era e seu Osvaldo foi junto.
A cena
era absurda. Fabiano estava possesso. Esfaqueava uma das novilhas sem parar. A
coitada gritava em agonia, desespero e dor. A outras na fila de abate pareciam
sentir a mesma dor e estavam extremamente agitadas. O que diabos estava
acontecendo?
"A
novilha deu trabalho pra entrar, ele perdeu o controle. Esse homem é louco, bem
que eu falo, todo mundo fala", Felício parecia desesperado. Ninguém se
atrevia a tentar parar Fabiano. As pessoas só olhavam. Ele estava coberto de
sangue, sangue espirrava pra todo lado, o chão estava em poças. "Dá logo
um golpe final, acaba com isso, criatura", gritava seu Onofre. Fabiano não
ouvia. Os olhos brilhavam, ele parecia gostar do que estava fazendo.
No
impulso, seu Osvaldo correu na direção de Fabiano. Todos paralisaram.
Seu
Osvaldo puxou Fabiano pelos ombros e num movimento rápido, Fabiano se virou e
enfiou a faca no peito de seu Osvaldo.
E puxou
até o pé da barriga.
Abriu seu
Osvaldo tal qual faziam com os bois pra tirar a buchada.
A novilha
agonizava de um lado do chão e seu Osvaldo do outro. A cena era monstruosa.
Havia tanto sangue...
Alguns
homens correram na direção de Fabiano e conseguiram tomar a faca dele, mas
agora era tarde.
Outros
nem conseguiram sair do lugar, vomitaram ali mesmo, nos próprios pés. Quem
haveria de imaginar algo como aquilo?
Seu
Osvaldo ouvia as histórias sobre Fabiano mas não dava importância, achava que
os colegas falavam demais, muito exagero. Muita conversa pra pouco trabalho.
O resto é
história. Homens que testemunharam diziam coisas de todos os tipos.
"Ele
tava possuído, aquilo é obra do diabo. O sangue de Jesus tem poder. Deus me
livre. Que Deus receba seu Osvaldo", dizia Alessandro, um rapazinho vindo
do interior, bastante religioso. Perdeu as contas de quantas vezes fez o sinal
da cruz.
"Aquilo
é droga, só pode ser droga", Antônio dizia com convicção.
Seu
Onofre passou a cuidar da família do amigo e compadre, dona Alda e os dois
filhos. Muitos não voltaram mais para trabalhar no frigorífico. A fama correu e
o lugar, em pouco tempo, quebrou, faliu.
Fabiano,
Deus é quem sabe por onde anda, andou. Sumiu no meio alvoroço. O boato é de que
ele voltou pro Ceará.
Hoje o
lugar é só uma ruína, o mato tomou de conta. Quem passa de ônibus das linhas do Calafate consegue ver
a antiga fachada sofrida com a ação do tempo no meio do mato. Dizem que se você
andar por ali, nas quartas-feiras, você ouve os mugidos desesperados dos
animais e logo depois ouve uma voz mansa dizendo "calma, já acabou".
E se você tiver coragem de continuar, depois de ouvir, pode ver seu Osvaldo
caminhando com uma linda novilha branca do lado, enquanto ele faz carinho na
cabeça dela.
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