quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Gêmeas

"Ai nossa, mas vocês são gêmeas?" Era a pergunta mais idiota de todas. Duas meninas, com a mesma idade, 17 anos, fisionomia idêntica, que se chamam Isabela e Rafaela, não precisa ser nenhum gênio pra perceber que são univitelinas.
"Se o pai e a mãe pelo menos fossem criativos nos nomes. Ainda bem que a gente não precisa mais se vestir igual. Coisa de gêmeo retardado" Rafaela resmungava enquanto seguiam o caminho de casa. Depois de tanto ouvirem perguntas sobre o parentesco, elas nem se davam mais ao trabalho de responder. Geralmente, só sorriam sem vontade.
"Bom, a gente é gêmea. A parte do retardo fica por sua conta mesmo", Isabela retrucava em provocação.
A rotina das meninas não era nada anormal. Namoradinhos, festinhas, colégio, etc etc.

Um fim semana desses, os pais estavam completando bodas de alguma coisa e iam sair pra comemorar, passariam o a noite de sexta, sábado e domingo num município próximo, numa pousada ecológica no meio do mato. A relação dos dois era muito admirada pelas meninas. Se portavam como se fossem ainda namorados, nos tempos de colégio. A família era feliz.
"Vocês tenham juízo, se cuidem, qualquer coisa liguem no telefone fixo da pousada. Tá na porta da geladeira. Blablabla amamos vocês", a mãe dizia rindo. Confiava nas filhas, não era preciso fazer proibições, apenas pedia que tomassem cuidado.
Noite de sexta, sozinhas, vão pra festas, certo? Errado! Tinham planos pro dia seguinte e resolveram descansar, afinal, sexta também é dia útil, teve aula e cursinho preparatório pro Enem.
Apesar de gêmeas, as únicas meninas, cada uma tinha seu quarto. Direito conquistado com muita luta pelas duas, na hora de convencer os pais.
"Pai, somos duas. Somos muito diferentes, ainda que muito amigas. Temos gostos distintos. Vou até usar palavras difíceis pra te convencer. Olha pra Rafa, toda bailarina frufru e eu não posso ver uma bola que quero meter a bicuda", Isabela argumentava.
"Você tá certa, eu concordo", o pai segurava o riso. A garota tinha 13 anos e cheia de determinação.
"É verdade, pai. Preciso do meu próprio espaço, de privacidade. Libera o quarto de tralhas pra Isa", Rafaela pedia quase se ajoelhando, com as mãos juntas na frente do rosto. Sempre foi mais dramática.
Comemoraram com pulinhos a decisão positiva dos pais. Ambas decoraram os quartos juntas. Num acordo, decidiriam que Rafa ficaria no quarto menor, mas com banheiro, e Isa no quarto maior, sem banheiro. Dormirem separadas não eram ruim a ponto de sentirem falta uma da outra, mas também não achavam bom por que dormir com a outra era ruim. Só estavam crescendo.

Perto da meia noite, trocaram boa noite e até amanhã e cada uma pro seu quarto.
Perto das 5 manhã, Rafaela levantou assustada. Um pesadelo a tirou da cama.

No pesadelo, ela tinha sido amarrada por um homem com rosto muito familiar, mas não se lembrava de onde. Ele a amarrava uma cadeira e dava tapas em seu rosto. Ela não entendia a razão de estar apanhando. Ele lhe dava puxões de cabelo, socos na cabeça, tapas na cara e ela chorava muito pedindo pra que ele parasse. O cabelo estava todo desgrenhado, o nariz sangrava, a boca estava inchada pelas porradas, o lábio cortado,  a cara lavada de lágrimas. Depois de espancamento, ele a soltou e a deixou acreditar que a soltaria.
Quando deu o primeiro passo pra correr, foi atingida na cabeça. Uma barra de ferro talvez. E apagou.
A partir daí, era como se Rafaela assistisse a si mesma de fora do corpo. Ela estava imóvel, caída no chão, o homem a olhava sorrindo. Virou de costas e foi até uma bancada cheia de coisas. Que porra de lugar era aquele? A Rafaela que assistia tudo acontecer olhava em volta e não reconhecia nada. Parecia ser um galpão, um barracão, uma garagem velha, uma oficina...
O homem voltou da bancada e tinha um serrote nas mãos. Mas que diabo é isso? Rafaela, a que assistia, tentava gritar, mas era como se ela fosse só uma projeção, uma alma saída do corpo. Tinha morrido? Ela teve a resposta quando o homem começou a serrar seu pé, o pé da Rafaela no chão, a sangue frio, como quem serra uma tábua numa marcenaria e o corpo no chão permanecia imóvel. Havia morrido num lugar sujo, espancada por alguém que não conseguia se lembrar quem.
E acordou do pesadelo.

Suada, ofegante, chorando um pouco, Rafaela acordou num pulo. Aos poucos foi recobrando os sentidos e percebeu que tinha sonhado. Se acalmou, levantou, percebeu que havia feito xixi na cama. Seu corpo inteiro estava dolorido como se realmente houvesse sido espancada, tal qual no sonho. O pé serrado no sonho doía que mal se podia firmar no chão.
"Eu ainda tô sonhando, não é possível um caralho desse", praguejava enquanto ia  pro seu banheiro tomar um banho. "É tudo psicológico, pesadelo imundo do inferno, até mijar na cama eu mijei. Que ódio". Rafaela era sensata, não ia fazer alarde por causa de pesadelo. Não era a primeira que sonhava coisas ruins. Tomou banho, trocou os lençóis, forrou o colchão mijado e voltou a deitar. "Se eu falo pra Isa que mijei na cama, vai ser uma vida de inferno e zoação. Melhor ficar por aqui mesmo. Já basta o estresse do sono atrapalhado".

Sábado de manhã, Rafaela acordou perto das 10 da manhã. Demorou a pegar no sono, mas conseguiu. Saiu do quarto, deu uma batida da porta da Isa, "levanta peste!" e foi pra cozinha. Na porta da geladeira junto com o número do telefone fixo da pousada onde os pais estavam, havia um bilhete:

"O Pedro me ligou e tô indo passar a noite com ele, não quis te acordar. Volto pro almoço, te amo".

"Mas tem que ser muito quenga pra sair de casa de madrugada por causa de macho". Mas tudo bem, não era a primeira vez. Pedro era legal, gente boa. Isa e Pedro não namoravam, mas ele andava na casa das meninas e os pais dela gostavam dele. Menino velho, de 17 anos, da turma das garotas.
Rafa ajeitou uma vasilha cheia de Nescau cereal com leite gelado, pegou uma colher e foi sentar no sofá pra ver tv enquanto comia e esperava a bonita voltar da noite de amor.
Ligou a tv e as primeiras imagens que viu eram de um lugar grande, mas abandonado. Por um segundo, achou que era uma daquelas cenas de Supernatural, quando os vampiros prendem ou o Sam ou Dean num lugar abandonado e rola todo aquele blablabla de série. Continuou assistindo pois amava Supernatural e Dean Winchester é o cidadão mais gato do planeta terra.
Rafa começou a reconhecer o lugar e viu que era o mesmo do pesadelo. Não era Supernatural coisa nenhuma. Era o jornal da manhã.

"Adolescente é encontrada esquartejada em barracão abandonado".

A essa altura, Rafaela já estava desesperada, aos berros discando o número do fixo da pousada, enquanto a foto da identidade de Isabela aparecia no jornal.

"Um suspeito foi identificado. O homem é vizinho da vítima e se mudou pro atual endereço há apenas três dias".

O mundo de Rafaela caiu. O homem do sonho era o novo vizinho esquisito.

Rafaela não só sonhou.

Todo mundo sabe que um gêmeo sente tudo o que o outro sente.

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