quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Saci

Hoje é dia do Saci, 31 de outubro, e não tem quem não saiba quem é o Saci Pererê.
Personagem do folclore brasileiro, o Saci é um garoto negro, que só tem uma perna. Usa um short vermelho, gorro vermelho e fuma um cachimbo, pulando de cá pra lá. Dizem que é muito danado. Assusta os bichos na fazenda, dá nó na crina dos cavalos, faz uma zona! A questão aqui é: eu vi o Saci.

Eu tinha cerca de 5 anos. Ainda morava em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, logo antes de vir embora pro Acre.
Era um dia quente, muito comum do lugar. Morávamos num quarteirão. Me lembro com detalhes do lugar: casa pequena, branca, com as vistas das portas e janelas pintadas de vermelho. O portão do condomínio era vermelho, de correr, todo fechado. A janela da sala ficava ao lado da porta de entrada e, numa mesinha baixinha, embaixo da janela, tínhamos uma tv de tubo de 14 polegadas (tivemos essa tv até um dia desses). Típico do pantanal, pernilongo vinha de balde; então todas as janelas eram teladas com aquelas telas verdes que eu nunca vi aqui no Acre.
Meus pais trabalhavam vendendo sorvete e eu e o Lucas, meu irmão mais novo, ficávamos com uma babá.

Lembro que eu estava deitada no chão, de frente pra tv, só de calcinha. A babá estava no sofá dando iogurte pro Lucas, que na época tinha menos de 3 anos. Na janela, atrás da tv, apareceu a criatura. Negro, de gorro, o cachimbo em uma das mãos e ele tava segurando na beirada na janela. Fiquei olhando e logo ele disse "Marinara!", num tom muito travesso. Diabolicamente travesso.
Fiquei esperando que ele saísse da janela e passasse pela porta que estava aberta, mas ele simplesmente sumiu. Do jeito que veio, foi.

Minha mãe acredita que eu acredito. Não me lembro de sentir medo. Mas anos depois, eu passei a ter muito medo de todas as coisas que eu via relacionadas à ele. Eu tinha pavor dos livros sobre folclore e odiava imagens do Saci. Hoje não me importa mais se acreditam e também não tenho mais medo. Mas eu sei o que eu vi naquela tarde.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Eu queria que todo mundo pudesse ter conhecido o meu avô.
Ele é, com toda a certeza do mundo, a pessoa mais bondosa que eu já conheci.
Sempre foi muito amoroso com os netos, apaixonado pelas filhas e derramado pelo único homem entre as cinco mulheres da prole e ainda o caçula.
Meu avô era a personificação da brandura. Em 24 anos da minha vida, eu nunca o vi murmurar, se queixar. Nem nos dias mais difíceis da doença, enquanto lúcido. Como o senhor tá, vô? "Ah ta bão. Tem que tá ruim mas tá bão também".
Minha mãe e a tia mais velha confirmaram que nunca viram ele e a vó brigar. Nunca, por nada. A não ser pelas vezes que a vó exagerava nos corretivos e ele odiava ver ela judiando das meninas.
A alegria dele era ver a vida brotar. Criava um pouco de gado e ficava todo faceiro e apaixonado sempre que um bezerrinho nascia. Carinhoso com os gatos da casa, com os cachorros. Não canso de dizer, um homem sem igual.
Nesse momento de luto, as opiniões sobre ele são unânimes. "Sempre gentil, sorridente, cumprimentava todos os vizinhos. Muito educado." Ele dizia que café e bom dia não se nega a ninguém. Que Deus me ajude a levar isso pro resto da minha vida.
Aliás, Deus era amigo dele. E se alguém merece estar no colo do Pai agora, é o seu Vicente. A fé o mantinha de pé. Nem nos dias mais difíceis, como Jó, nunca sequer perguntou o por quê do sofrimento.
Conversando com os parentes, chegamos a conclusão de que não tem uma pessoa nesse Quinari que possa falar algo de ruim do vô. Ele não magoou ninguém, não machucou ninguém, não foi rude, nunca deu um bom dia atravessado.
Não existe ninguém como ele.
Meu avô era surreal de bom. Espero que vocês tenham a oportunidade de conhecer alguém como ele um dia. Mas eu acho difícil.
O médico dele falou que nunca teve um paciente com tanta dignidade como meu avô. Muito amado e bem cuidado pelos filhos.
Um amigo me disse que meu avô criou uma mulher incrível que é a minha mãe e ela foi capaz de criar três pessoas incríveis que somos eu e meus irmãos. E esse é o maior legado dele. Nós, filhos e netos educados, responsáveis, honrados. Vou lembrar disso pra sempre.
Mesmo muito triste, tô aliviada. Ele merecia descansar. Os últimos meses foram muito difíceis. A teimosia dele, às vezes, deixava a gente de cabelo em pé, mas cada minuto com ele foi precioso.
E eu me sinto muito feliz por ter tido a oportunidade de conhecê-lo e chamá-lo de vô. Tê-lo perto e ter puxado dele a tara por doces.