sábado, 26 de junho de 2021

8 da noite. Os moradores do pequeno vilarejo que, em outros momentos ficam até 10 da noite proseando na calçada, compartilhando tereré - em dias frios, chimarrão - já se guardaram. No silêncio profundo, é possível que se ouça o barulho do ferro dos trincos se fechando, de travessas de madeira cobrindo as janelas, cadeados sendo trancados.
Não é a violência que preocupa. A pacata vila não tem os problemas de cidade grande. O único problema do lugar são noites como essa.

As luzes das casas estão apagadas, todos querem passar despercebidos. Exceto uma pessoa. Nessas noites, há 13 anos, seu Moacir leva a cadeira para fora, se senta, acende o cigarro de palha e espera. E espera. Espera sabendo o que esperar.

O relógio marca meia noite. Bem longe, na mata fechada, se ouve o uivo. Seu Moacir respira melancólico, enrola mais um cigarro de palha, acende, traga e espera. Sabe o que vem. Todas as noites como essa, de lua cheia, a lua mais alta no céu, ele repete o mesmo ritual.

Os outros moradores acham que ele é corajoso, mas não contestam. Todos sabem a razão de ele estar ali e não é problema de mais ninguém. Só haverá sossego outra vez quando seu Moacir conseguir cumprir a sua missão.

Ele ouve os passos de quem se aproxima, passos velozes, vem correndo, em quatro patas. Seu Moacir se levanta e caminha em direção ao bicho que vem correndo. Se encontram em frente à velha igreja da cidade. O animal pára e se aproxima devagar. O olhar é raivoso, duro, penetrante. Os olhos redondos, escuros como duas jabuticabas refletem o brilho da lua prateada. O rosnado corta a noite. É grosso, um aviso para que não se aproxime mais. Nas residências, nem todos dormem. Aguardam o desfecho dessa história.

Seu Moacir não se abala, permanece caminhando em direção à besta. Olha para ela num misto de ternura e profunda tristeza. O bicho arreganha ainda mais os dentes e avança um passo. Seu Moacir pára diante do  bicho e pergunta baixinho "até quando?" O animal o olha curioso, é como se houvesse entendido. O homem ousa mais um passo e o bicho recua. Não há intenção de domínio da parte do velho, não há interesse em subjulgo. Ele quer se aproximar.

O velho Moacir sente um lampejo de esperança. Quem sabe seja hoje! Há tantos anos buscando a mesma coisa, essa é a primeira vez que chega tão perto. Ele joga a bituca do cigarro no chão, tranquilamente. Seus movimentos nunca são súbitos, pois não quer assustar e, também, não há pressa, ele pode esperar pelo resto da vida.

Quando Moacir avança outro passo, escuta um grito de homem, chamando a atenção, vindo atrás dele. Um homem alto, usando botas e um chapéu, sai da sombra e para embaixo da luz fraca do poste. Ele empunha uma arma e seu Moacir se assusta.

- Não faz nada! - Moacir grita de volta. Com a movimentação estranha, o bicho voltou a se ouriçar. Os pêlos do dorso em pé, demonstrando hostilidade. Rosnava ainda mais alto, arreganhava ainda mais os enormes dentes afiados. 

Como sempre, essas coisas acontecem muito rápido. O desconhecido atirou na direção do bicho quatro vezes. Seu Moacir pouco pôde fazer a não ser correr na direção do homem de botas e chapéu, se jogando em cima dele.

No terceiro tiro, o animal gritou dolorido, magoado, ferido. Fora acertado. No quarto tiro, seu Moacir sentiu a bala lhe atravessar à queima roupa. Em casa, as pessoas procuravam entender o que estava acontecendo, olhando pelas brechas da porta.

O desconhecido, o homem que seu Moacir não sabia quem era - e não teria como saber mesmo - veio de outro estado. A história do bicho e seu Moacir corria longe, mas muito mal contada, e o homem achou que ele teria de que resolver isso do jeito que ele conhecia: matando. Um grandioso intrometido, isso sim!

Seu Moacir, baleado e sangrando muito, se arrastou até o animal caído, que respirava pesado, arfando, o olhar fixo no horizonte. Sem mais nada a perder, tocou a besta, agora inofensiva, e lágrimas lavavam seu rosto. A dor não era física. Ele havia falhado.

O homem de botas e chapéu não entendia o que diabos acontecia ali. Achava que seu Moacir estava em perigo, achou que estava ajudando, achou que matando o lobisomem que atordoava a cidade, ganharia fama e respeito pela região.

Seu Moacir e o lobisomem pararam de respirar juntos, ambos baleados, caídos lado a lado.
As pessoas começaram a sair de suas casas e se aglomeram em volta dos corpos. Enquanto uns gritavam com o forasteiro, outros faziam o sinal da cruz e desejavam paz. O padre saiu da paróquia, lançou água benta sobre os cadáveres e deu a extrema unção.

O visitante indesejado estava a ponto de ser linchado quando o padre se colocou entre o homem e a população revoltada e lamuriosa. O levou para dentro da paróquia a fim de esclarecer os fatos.

- Há 15 anos, uma moça chamada Alice fugiu da casa dos pais com um outro rapaz. Ficou sumida por um ano. No decorrer desse ano, a mãe da menina morreu por não saber da filha. Pouco tempo depois da morte da mãe, a menina voltou para casa grávida e sem marido. O pai dela, desgostoso pela atitude da menina e a culpando pela morte da mãe, deu-lhe uma pisa, até que ela perdesse o bebê. Possuído pela ira, não se arrependeu, não teve remorso, não acolheu a própria filha e ainda causou a morte do neto. Cego de ódio, amaldiçoou a garota e a mandou embora. A maldição do pai fez a menina virar besta, virou bicho e fazem 13 anos que ela vem pra cá em toda lua. O pai caiu em si e desde então buscava o perdão da filha, sempre esperando por ela. Ali no chão estão pai e filha. E agora descansarão juntos.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Fui à casa de minha mãe. Vários móveis foram vendidos, alguns descartados, outras coisas vieram pra minha casa, outras pra casa dos meninos. A casa está praticamente desmobiliada e nessa altura do campeonato, eu nem sei se essa palavra existe.

 Teias de aranha cruzando as portas, provando que não há mais trânsito entre elas.

O chão empoeirado, com lama já seca, pegadas, mostram que ninguém mais tira os sapatos para entrar, sem pudor de sujar o chão antes limpo com tanto zelo.

A mesa da cozinha não está mais ali. Noutro tempo, servindo café com leite e pão fresco, foi vendida junto com a cadeiras que nem faziam parte do jogo.

Há um lixo entulhado no canto, empurrado porcamente com uma vassoura, apenas para limpar "o meio". Aquele monte de tralha que a gente sempre pensa em jogar fora mas procrastina pois vai que um dia precisa de algo dali.

A área de serviço é a parte mais abandonada. Está suja, com baratas mortas das vezes que jogamos veneno apressados em ir embora logo, aranhas que caíram dentro do tanque e não morreram por não conseguirem subir com suas oito patinhas o material escorregadio da cuba. Um pano de chão que secou embolado mas em outro momento esteve de molho, só que a água de qualquer balde evapora ao longo de quatro meses.

E no varal, uma calcinha. Presa por um único prendedor, garantindo que o vento não a derrubasse, esperando secar para ser vestida naquele corpo novamente. E espera faz tanto tempo que a calcinha já está meio endurecida, empoeirada também, porto de chegada ou partida para teias de aranhas até a parede mais próximo ou o varal vizinho. Uma única calcinha, solitária, que até hoje eu não tinha reparado e fiquei compridos segundos olhando pra ela ali, pendurada, sem tocá-la, sem coragem pra recolhê-lha, pois não há mais armário para guardá-la, corpo para vestí-la.

A calcinha não sabe de nada, de nada. Mas ficou ali, parada num tempo que não existe mais.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Eu tinha muito medo do dia que o algoritmo do teclado do celular entendesse e deixasse de sugerir seu nome depois do "bom dia" ou "boa noite".
Daí a primeira sugestão passou a ser o nome dele. E amenizou um pouco.