quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Estrada

A viagem era longa, já fazia três dias que estávamos na estrada. Mas não dá pra dizer que era de todo ruim: não tínhamos pressa e estávamos curtindo o momento.
Escureceu e estávamos passando por uma vilazinha tão pequena que nem dá pra chamar de cidade. Era um vilarejo.
Caía uma chuva absurda e o combustível do carro tava acabando. "Tamo indo só no cheiro da gasolina".
Decidimos que era melhor ficar ali mesmo, procurar um hotelzinho, abastecer e achar um lugar pra jantar.
Como disse, um vilarejo. E todos esses lugares ficavam exatamente um do lado do outro, sem exagero. Perfeito pra nós. Apenas umas poucas casinhas em volta. Parecia coisa de filme.
Abastecemos e descemos dar entrada na pensão. Nesse meio tempo, a chuva diminuiu e saímos pra jantar na churrascaria ao lado. Algumas pessoas estavam jantando e era como se tivéssemos sido a atração do lugar, atraindo todos os olhares.
Sentamos, fizemos o pedido pra uma moça simpática e aguardamos, conversando distraidamente.
A comida era bem boa. Uma carne molinha, bem temperada. Estávamos satisfeitos. O lugar era pequeno mas não era uma espelunca. À luz da lua, todo o vilarejo parecia simpático, até fofo.

No meio da nossa conversa, um gato saindo pela porta da cozinha me chamou a atenção. É que eu adoro gatos e parece que meus olhos são treinados para encontrá-los. Fiquei olhando o bichano no chão e, quando subi olhos, foi que vi aquilo.
Com certeza era o cozinheiro. Ele usava uma calça jeans, uma regata branca e um avental branco. E botas brancas de borracha. A roupa toda suja de sangue. Das carnes, eu supuz. Aparência velha, cansada, cabelos grisalhos, barba branca, bigode parecendo sujo. O cabelo todo desgrenhado. Ele andava mancando a perna direita e atrás dele vinham mais quatro gatos, talvez atraídos pelo cheiro de comida, de carne ou sangue.
Na mão esquerda trazia uma faca de açougueiro.
Ninguém no restaurante pareceu se impressionar, então supuz, novamente, que ele fosse conhecido de todo mundo, ainda mais o local sendo tão pequeno. Confesso que me deu um pouco de nojo ver a higiene dele tão precária.

Não deu muito tempo de pensar nisso quando vi a faca cortando o primeiro pescoço, de um dos meus amigos.

Fiquei inerte. Parecia que tudo acontecia em câmera lenta e eu não conseguia me mover. Olhei em volta e todos continuavam jantando normalmente. A única mesa com qualquer tipo de movimentação era a nossa. Senti uma mão me puxando, me tirando do meu transe e finalmente voltei a mim e vi meu amigo caído dentro do próprio prato e sangue escorrendo de litro. Minha outra amiga era quem tinha me puxado pra fugirmos. Entramos no carro, deixando tudo pra trás. Inclusive o nosso amigo.

É muita loucura. Num minuto a gente tava sentado jantando e no outro meu amigo tava morto. E agora eu tô aqui prestando o depoimento, senhor policial. A vila fica há nem 10 Km daqui, é só voltar pela BR. Nossas coisas ficaram no hotel, só conseguimos chegar no carro muito rápido e fugir.

"Realmente, é uma história muito interessante."

Senhor, eu tô em choque. Nem sei te dizer o que é estranho, o que é loucura, o que aconteceu direito. Parece que eu tô sonhando. Minha amiga não disse uma só palavra até encontrarmos esse posto policial e agora ela não pára de chorar. Eu nem sei o que fazer. Como dizer pros pais do Felipe que ele foi assassinado na nossa frente?

"Quanto a isso, você pode ficar tranquilo. Não será necessário dizer nada a ninguém. Ouviu que sua amiga parou de chorar? Segura a cabeça dela um instante. Você vai parar de falar também".