segunda-feira, 6 de julho de 2015

carta ao passado

Quando se completa 50 anos, nós bruxas, temos o direito de voltar no tempo e mudar algo em nosso passado.
Nosso clã não é imortal e cada bruxa só consegue realizar o retorno uma vez. Pouquíssimas conseguiram ir pela segunda.

Temos restrições sobre coisas que podem ser mudadas. As regras são claras: não interfira em nascimentos, mortes, acontecimentos históricos e etc etc coisa importante.
Nunca dei muita moral pra isso. Sempre fui uma bruxa avessada, dizia minha mãe. A do contra. A questionadora. Incontrolável. Quando ela voltou no passado, eu já tinha 25 anos e, acredite, a bonita voltou até minha infância e me colocou em aulas de balé. "Queria tanto uma filha mais delicada."
Hoje tenho uma boa postura, mas a delicadeza... Bom, enfim.
É incrível o que a magia pode fazer. Os homens buscam um modo de viajar no tempo através da ciência há décadas e é em vão. Pobres humanos...
Quando chegou o comunicado de que meu portal para a viagem no tempo foi liberado, fiquei animadíssima. Pra que parte do passado eu voltaria? 
13 anos, primeiro beijo? Suspende. Aquele cara... Eu poderia ter conseguido algo melhor. Lembrei dos meus 15 anos, menarca, colegial, quando eu pensava em estudar, fazer faculdade e ainda nem sabia que vinha de uma família de bruxas.
Meu caráter e minha personalidade se moldaram muito cedo, sempre fui fiel aos meus princípios. Mas coisas começaram a mudar de figura quando conheci um homem. Um humano. Minha mãe sempre me alertou sobre os perigos do envolvimento com seres tão instáveis quanto os seres humanos e eu, a do contra, nunca dei ouvidos.
Era incrível. Os humanos podiam ser imprevisíveis, intensos, faziam as coisas acontecer, já que a magia não existia no mundo deles. Toda a razão da qual se orgulhavam, a capacidade de pensar, dava espaço à instintos primitivos, animalescos, selvagens, em situações extremas. E isso me apaixonava de tal forma, que perdi o chamado bom senso para cuidar de mim, proteger minha magia.
Eu que sempre fui tão forte e dona de mim, de repente cedia aos caprichos de uma criatura que se mostrava cada vez mais egoísta e mesquinha. As coisas fugiram do meu controle.
Não que eu me arrependa de tudo o que aconteceu. Jamais. Não é do meu feitio. Eu teria entrado naquela relação, assim como entrei, mas teria feito com que algumas atitudes não fossem tomadas.

Pra ser sincera, meu histórico de relações afetivas foi um bocado conturbado.
Mas, para que época voltar? O que eu poderia mudar na minha vida? Hoje estou bem, mamãe ficaria orgulhosa de todas as minhas conquistas. Faço parte do conselho das bruxas, no mundo humano sou bem sucedida, não me casei (disso ela não se orgulharia).
O que mudar? O que mudar? A perguntava martelava na minha cabeça até o dia do ritual. 
Tudo estava pronto, o conselho estava todo presente. Eu seria punida se fizesse algo contra as regras, eu sabia, assisti bruxas viajarem no tempo centenas de vezes.
"A qual idade quer retornar?" me perguntaram e eu hesitei a responder. Forcei um pouco mais o pensamento e me lembrei do meu aniversário de 10 anos e de como eu estava empolgada em ter uma década completa de vida. Engraçado que hoje completo 50 e a sensação de décadas completas ainda existe.

Com o pensamento, me veio a epifania de que eu não mudaria nada em toda a minha vida. Que agora estou bem e não exista nada que fosse mudado e me faria sentir-me melhor. Mas há algo que eu posso fazer. Sem mudar nada e que vai dar força a mim mesma, no passado.

"Quero voltar 40 anos, por favor."


O feitiço foi lançado.

"Ventos do tempo. Relógio contrário.
Deuses do passado a levem em segurança. Que o passado se molde. Que o futuro seja manso.

Ventos do tempo. Relógio contrário. A tragam em segurança. Que o passado seja manso.
Ventos do tempo. Relógio contrário.
Ventos do tempo. Relógio contrário. 
Deuses do céu. Deuses da terra. Deuses do mar.



Ventos do tempo. Relógio contrário.

Ventos do tempo. Relógio contrário."

Cheguei ao meu aniversário de dez anos. A manhã dele, pra ser mais exata. Eu-criança ainda dormia. 
Mamãe entrou no quarto e eu não me assustei. Nem ela.
"Oi mãe. Como você está linda."
"Eu sabia que viria."


Tinha me esquecido do quanto ela era linda, de como os cabelos brilhavam, a pele parecia seda. Que saudade eu sentia do cheiro dela.
Nos abraçamos e contei-lhe sobre meu futuro. Disse à ela que as aulas de balé não me deixaram sentir dor nas costas e ela riu. Contei que fazia parte do conselho e vi seus olhos marejados. Sabia que ela se orgulharia. Falamos pouco, o tempo era curto.
"O que você vai mudar, filha?"
"Só preciso de um papel e uma caneta, mamãe. Eu não quero mudar nada. Estou bem, feliz. E a única coisa que eu mudaria, seria para ter você por perto, mas não posso."
Ela tocou meu rosto envelhecido e disse para eu assumir o grisalho, que ficaria lindo. Lembrou-me que meus traços são fortes como o de meu pai. E que eu era uma garotinha incrível, aos 50 anos.
"Você não vai mudar nem aquela história com aquele homem fedido?"
Eu ri baixinho. Eu-criança não poderia acordar e me ver ali. (uma das regras: não deixe seu passado ver você.)
"Mãe, o quanto aprendi com ele foi essencial pra quem sou hoje. Eu não mudaria. Não anularia a história. Só preciso dar alguns conselhos a mim mesma."

Minha mãe me deu um abraço apertado, disse que confiava em mim, sempre confiou, e estava muito orgulhosa.
"Feliz aniversário, meu amor."
Abraçou-me mais uma vez e saiu do quarto.
Conhecia o espaço como a palma da minha mão e fui até o armário onde guardava papéis, canetas, e me coloquei a escrever.


Acordei e sabia exatamente que dia era. Finalmente 10 anos de idade. Sou uma mocinha. Pré-adolescente.
Abri os olhos devagar para me acostumar com a luz que vinha pela janela. Rolei pela cama e, ao lado dela, no criado-mudo, tinha um envelope diferente. Abri-o rapidamente e comecei a ler.


"Feliz aniversário, pequena.
Você vai ser muito feliz. Muito mesmo. E será importante. Mas antes, você vai passar por situações difíceis que só te farão ser mais esperta, inteligente, mais especial.
Nunca se esqueça que só você manda em você (e mamãe, ela é a pessoa mais incrível que você vai conhecer. Tente não arrotar na mesa e faça as aulas de balé sem reclamar.).
Nunca deixe que ninguém te controle, te manipule, diga o que você deve ou não fazer, o que pode ou não fazer. Não permita que digam que você é incapaz, desimportante, feia ou qualquer coisa negativa.
Você têm princípios. Não os traia. Nunca duvide da sua capacidade, da sua força, suas habilidades, talentos. E quando alguém elogiar você, agradeça. 
Não se reprima e não se oprima. Não se rebaixe. Não duvide das suas intuições. Elas não erram. Assuma seus erros com responsabilidade, sempre de cabeça erguida.
E ame. Ame muito, mas com os pés no chão, não se traia, não abandone as suas convicções. Não confie em ninguém mas aprenda a hora de dar um voto de confiança.
Não existe fórmula certa, bebêzinha, para a felicidade. 
Algumas coisas você só aprenderá consigo mesma.
Com amor,
Para você."

Entreguei à carta a mamãe, que chorava discretamente enquanto lia.
Ela me abraçou e disse que me amava muito. E me fez jurar que seguiria àqueles conselhos que eu nem sabia de quem eram. Disse que um dia eu entenderia.


Hoje, aos 50 anos, eu releio a carta e sei que tive a melhor vida possível.



Tema do desafio: Conselhos que daria a si mesma, no passado.

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